EVENTOS

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Um filme bom e necessário

José Neres

 

Vez ou outra, ouço por aí alguém dizer que não gosta do cinema maranhense, que os filmes são ruins, mal produzidos e que os atores não têm grande talento ou técnica apurada. Não concordo com esse pensamento e fico triste com esse julgamento (muitas vezes antecipado) de pessoas que, quando são instadas a dizerem o nome de meia dúzia de filmes maranhenses, titubeiam, gaguejam e mal conseguem citar o nome de uma ou duas obras, que, em alguns casos, nem maranhenses são.

                Verdade que ainda não temos uma tradição cinematográfica. Ainda estamos construindo uma história e uma identidade nas telas da Sétima Arte. Mesmo assim, já podemos contar com nomes de relevo na direção e na produção de filmes com qualidade reconhecida ou em fase de reconhecimento por parte da crítica especializada, como é o caso de Frederico Machado, Murilo Santos, Beto Matuck, Francisco Colombo, Mavi Simão, Lucas Sá, Joaquim Haickel, Luís Mário Oliveira, Erlandes Duarte, Cicero Filho e Inaldo Lisboa, entre outros importantes nomes que vêm se dedicando à nobre arte de levar entretenimento, cultura e conhecimento às pessoas.

                Podemos também acrescentar a essa lista o nome de Marconi Franco de Sá, o talentoso cineasta, ator e produtor que acaba de trazer à luz o filme “Sob um novo olhar”, que teve sua pré-estreia hoje (11.12.2021) em um dos cinemas de nossa capital. Antes de falarmos sobre a obra, é importante também ressaltar o quão difícil é produzir um filme com um orçamento limitado, o que exige muito mais esforço físico e mental para alcançar o efeito desejado. Mas tal entrave possibilita também o uso mais largo da criatividade e de soluções que provavelmente não viriam à tona caso jorrasse verba em uma cascata mágica. É preciso lembrar também que o público precisa acolher e incentivar os artistas locais e não cair na tentação de querer comparar produções de médio e baixo custo com as megaproduções internacionais que invadem os cinemas mensalmente.

                E hoje a plateia deu uma lição de acolhimento ao praticamente lotar todo o espaço do cinema e depois aplaudir efusivamente o filme, seus atores, a equipe técnica e seu diretor. Mas será que os aplausos foram merecidos ou foram apenas um gesto de educação e agradecimento? Pelas lágrimas que vi rolando por diversas faces, pelo brilho em muitos olhares e pelo respeitoso silêncio seguindo de suspiros de êxtase em muitas cenas, acredito que hoje tivemos a estreia de um dos melhores e mais completos filmes do cinema maranhense.

                O enredo a princípio parece simples. Um casal bastante apaixonado planeja ter um filho, mas parece haver alguma dificuldade na realização desse desejo. O tempo passa, a hora do parto se aproxima e, juntamente com a chegada da criança, uma notícia altera os rumos da história. A partir daí, algumas fraturas sociais e familiares dão expostas e o enredo vai ganhando densidade. Claro que aqui não iremos antecipar os fatos, mas o diretor foi bastante feliz ao colocar alguns detalhes (uma correspondência que chega, um porta-retrato caindo...) que vão além do mero capricho artísticos e antecipam partes importantes do filme.

                A atuação da maioria dos atores é impecável e mesmo as quase imperceptíveis claudicâncias e alguns detalhes de continuidade não comprometem o conjunto. Como em um súbito turbilhão, o espectador começa a entrar na trama e a nutrir simpatia pelas personagens e mergulhando nos dramas centrais e paralelos que se bifurcam ao longo da narrativa. A mão segura do diretor conduz a história de modo a multiplicar as peripécias sem cair na pieguice ou no senso comum.

Ao longo do filme, muitos são os temas discutidos: traumas, conflitos familiares, amizades, perseverança etc. Isso caba fazendo com que o espectador sinta certo grau de empatia por alguns personagens e passe a observar o dinamismo de algumas cenas sob ângulos diferentes. O diretor Marcone Franco de Sá soube dosar os elementos constituintes da maioria das obras cinematográficas (drama, humor, fotografia, sonoplastia, diálogos, silêncios etc.) de modo bastante equilibrado e coerente. O resultado foi um filme de bom gosto, com um enredo bem elaborado, excelentes atuações e muitos pontos que capazes de levar a plateia a diversas reflexões sobre o que estamos fazendo com nosso tempo e com nossos entes queridos...

Todos os aplausos foram merecidos. No final da apresentação, muitas lágrimas rolavam pelas faces de pessoas que, de certa forma, viram um pouco de si mesmas e de seus dramas internos representados na grande tela que, mesmo inerte, simula muitos momentos de nossas vidas. Todos os envolvidos no projeto mereceram os aplausos estão de parabéns. Belo filme!

Depois de ver esse filme, acredito que muitas pessoas irão ver as obras cinematográficas produzidas em nosso Maranhão sob um novo olhar.

CELSO ANTÔNIO FOI AO CINEMA EM UMA MANHÃ DE SÁBADO

José Neres

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                Um sábado ensolarado. Dez da manhã. Final de período de férias. Em um contexto como esse, quase ninguém imaginariam que mais de uma centena e meia de pessoas se reuniria em uma sala de cinema para assistir à pré-estreia de um documentário sobre arte. Mas foi isso o que aconteceu na manhã do dia 27 de julho em um shopping de nossa capital.

                O filme/documentário em questão era “Celso Antônio, brasileiro”, dirigido pelo cineasta Beto Matuck, com a produção executiva de Joaquim Haickel e Joan Santos. Durante aproximadamente oitenta minutos, o cinema foi inundado de sons, silêncios e de olhares atentos. Como a maioria dos presentes pouco ou nada sabia sobre o escultor maranhense Celso Antônio de Menezes (1896-1984), quase tudo o que era projetado na tela era novidade e era recebido com voracidade por uma plateia que intimamente, talvez, se sentia incomodada por desconhecer as obras de arte de um dos mais respeitados nomes da arte escultórica brasileira.

                Quem saiu de casa e se dirigiu ao shopping imaginando que assistiria a um documentário que tinha como único objetivo trazer à tona a vida e a obra de um artista que galgou os maiores patamares da fama e depois caiu no esquecimento acabou se enganando. Beto Matuck, o diretor do filme, não se limitou a recontar a história do artista plástico caxiense que foi elogiado por nomes como Manuel Bandeira, Le Corbusier, Di Cavalcanti, Rodolfo Bernadelli, Otto Lara Rezende,  Lúcio Costa, Portinari e Carlos Drummond de Andrade. Ele preferiu narrar a trajetória desse artista com uma mescla de busca científica pelos fatos e poeticidade. O resultado é impressionante. Um filme sensível, coerente e de muito bom gosto do início ao fim.

                A opção do diretor pelas tomadas lentas, com closes constantes em ângulos diversos das esculturas e pinturas de Celso Antônio serve para deixar o público saborear com mais calmas as formas artísticas e as linhas harmônicas de um homem que tinha consciência da força de seus traços e que sabia esculpir em diversos suportes sempre com a mesma maestria. Em casos assim, velocidade não combina com a tentativa de educar os olhares para o que levou tanto tempo para ser construído.

                As obras escultóricas de Celso Antônio retratadas no filme, e outras que podem ser resgatadas pela curiosidade dos interessados no assunto,  chamam a atenção pela ênfase na buscou incansavelmente pela sensação de movimento dentro das impossibilidades de uma arte que por si própria tem como base a necessidade da imobilidade. Os corpos femininos são outra obsessão do artista, que sem apelar para aspectos vulgares, remete tanto à maternidade quanto à sensualidade na representação de silhuetas que tentam reproduzir o perfil da mulher brasileira, sem a imposição de europeizar suas esculturas ou de dar-lhes aspectos de mulheres idealizadas. Aparentemente seu objetivo era destacar os matizes identitários das formas, curvas e culturas de pessoas que traziam na pele os traços da brasilidade.

                Outra parte a ser destacada no filme/documentário é o fato de que os depoimentos utilizados na composição da obra não são apenas de especialistas em artes ou de professores que possam dar um tom academicista ao trabalho, depoimentos de pessoas da família do artista e admiradores que falam a linguagem popular também foram aproveitados de modo bastante equilibrado. Didático, mas sem o tom professoral, o trabalho cinematográfico de Matuck, Haickel e dos demais colaboradores faz com que o público aprenda sobre Celso Antônio de maneira lúdica e que todos sintam vontade de procurar mais referências sobre esse escultor que deveria ter seu nome mais (re)conhecido pelas pessoas não apenas de seu Estado ,  mas também de todo o território brasileiro.

                Quando acabou a projeção do filme, todos os presentes tinham a certeza de que valeu a pena disponibilizar parte do final de semana para aprender a valorizar um pouco mais nossos artistas, que, quase sempre são mais respeitados fora de sua terra do que dentro dela.

                O filme Celso Antônio, Brasileiro pode servir como porta de entrada para a leitura do livro Um gênio esquecido: Celso Antônio e o Modernismo, de Eliezer Moreira Filho, e para o resgate de tantos outros artistas que merecem um olhar mais atento para sua vida e sua obra.

 

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PEQUENA COMPANHIA, GRANDE ESPETÁCULO

José Neres

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                Podemos confiar cegamente em nossas memórias? Será que tudo aquilo que pensamos recordar realmente aconteceu da mesma forma que acreditamos haver ocorrido? Qual a linha divisória entre as recordações verdadeiras e a ficção que inunda nossas vidas? Será que uma personagem criada a partir de memórias pode ter sua trajetória confiável quando vista fora do plano da imaginação? Esses e muitos outros questionamentos podem ser encontrados na peça Ensaio sobre a memória, encenada pela Pequena Companhia de Teatro na primeira semana de maio de 2019.

                Fui assistir ao espetáculo no dia de sua estreia. Fiquei logo feliz ao saber que os ingressos estavam quase esgotados e que, mesmo em um final de feriado, dezenas de pessoas se dispuseram a investir no enriquecimento da própria cultura. Já assisti a outras peças da Pequena Companhia de Teatro e sabia que o texto e a encenação teriam grande densidade cênica e que haveria uma grande e elaborada imbricação entre a narrativa e o cenário, quase sempre minimalista, mas repleto de simbologias a serem destrinçadas pelo público.

                Inspirado no conto A outra morte (La otra muerte), do magistral escritor argentino Jorge Luis Borges, e repleta de intersecções dialógicas, a peça trabalha diversos aspectos que vão desde a criação ficcional até, como já informa o próprio título, a relação do Ser com suas próprias recordações, passado por questões sociais , como a tortura, o desparecimento de pessoas e um tumultuado momento político-cultural que atravessa gerações e apresenta seus reflexos em diversas épocas.

                A direção artística do experiente Marcelo Flecha foi exemplar e conseguiu imprimir seu estilo em uma encenação que exige bastante tanto dos atores quanto da plateia, que não pode perder uma fala ou um movimento, pois tudo está devidamente articulado com o intuito de construir um todo que se completa em um jogo de luzes, sombras, palavras, gritos, grunhidos e silêncios. Sem desperdícios e/ou adiposidades, o diretor optou por equilibrar a força do texto com a atuação cênicas dos atores, a fim de que os silêncios e os espaços vazios fizessem parte de um conjunto harmônico e extremamente necessário à narrativa.

                No palco, o cenário remetia aos fios tecidos da/pela memória e às construções sinápticas que se constroem e se desconstroem ao longo do tempo, tanto por conta dos desgastes naturais da vida quanto pelas agruras cotidianas. O jogo de encaixe das peças cria um clima de tensão e desperta a necessidade que temos de parar para rever conceitos, atitudes e até mesmo a própria construção de um passado que nem sempre se encaixa nas necessidades do presente.

                Muito bem sintonizados entre si, os quatro atores em cena (Tássia Dur, Cláudio Marconcine, Kátia Lopes e Lauande Aires), desdobraram-se para dar vida às personagens. A participação da atriz Kátia Lopes é incidental, mas serve para compor um cenário histórico que se repete ao longo das gerações. Por sua vez, o par formado pela jovem e talentosa Tássia Dur e pelo experiente ator Cláudio Marconcine interage de forma consistente e ocupa todos os espaços do palco em atuações bastante técnicas e centradas em um texto complexo que desafia a atenção do público a cada nuance destacada tanto pela inflexão de voz quanto pelas tensões internas que servem como amarração para os diversos nós da narrativa.

                A participação mais imponente, porém, foi a de Lauande Aires, que teve que multiplicar sua atuação em situações em que a presença física tinha que superar as falas e até a profundidade do texto. Habilidoso no uso da corporalidade e da voz, a cada momento em que ele sai da aparente periferia da cena para ocupar o lugar de destaque no palco há uma espécie de fusão entre as hipotéticas realidades e as múltiplas facetas da memória, servindo tento para imprimir um novo ritmo às cenas como também para jogar luzes sobre as nebulosidades das recordações.

             Ensaio sobre a memória é uma peça muito bem construída, com um cenário bastante condizente com os aspectos relativos ao enredo do espetáculo e com ótimas atuações dos atores. A sala lotada e o ambiente intimista deixam o público mais próximo aos atores e suas personagens. Tudo isso contribui para um espetáculo de muita qualidade, o que já se tornou uma das marcas da Pequena Companhia de Teatro. Uma peça para ser guardada na memória e torcer para nunca ser traído por ela.

 

 

LIÇÃO DE BOTÂNICA NOS PALCOS DA ILHA

José Neres

 

Machado de Assis é um dos mais brilhantes escritores da literatura brasileira. Notabilizou-se por ser um grande romancista, brilhante contista, critico e cronista de primeira linha. Suas produções voltadas para a poesia e para o teatro, no entanto, jamais conseguiram obter o mesmo sucesso de suas demais obras, constando, quase sempre, como uma espécie de curiosidade ocasional na vida de um magistral ficcionista.

                Talvez por isso cause espanto quando alguém se depara com um cartaz anunciando uma peça original de autoria de Machado de Assis (as adaptações são mais corriqueiras!). Algumas pessoas menos habituadas com os meandros da obra do autor de Dom Casmurro creem logo que se trata de um engano. Mas não. Ele, mesmo sem muito afinco, se dedicou às artes da dramaturgia.

               É preciso então divulgar para as novas gerações que Machado de Assis vai muito além de seus contos e romances mais conhecidos. É preciso também levar os jovens ao teatro para que eles sintam a magia que emana dos palcos e que entrem em contato com uma linguagem artística nem sempre acessível ao público em geral.

                Foi isso o que fez a companhia teatral Ribalta Produções Artísticas, que, em parceria com algumas escolas proporcionou aos jovens uma experiência no campo das artes cênicas. A peça escolhida foi Lição de Botânica – de Machado de Assis, que apesar de seus ares românticos já demonstra um rumo realista à trama e, ao mesmo tempo, já toca no tão discutido e atual tema do empoderamento feminino.

                Mesmo com uma narrativa ambientada no século XIX, a direção e os atores conseguiram fazer com que a temática envolvesse a plateia, formada por garotos e garotas com idade entre 10 e 17 anos, aproximadamente. Algumas mínimas adaptações na linguagem ajudaram os jovens a acompanhar a trama vivida pelo Barão Sigismundo de Kernoberg (Mozar Melo), Dona Helena (Laura Henriques), Dona Cecília (Laura Neres) e Dona Leonor (Linda Barros), sob a direção e produção competentes de Thiago Cordeiro e Laura Henriques.

                Em um cenário que simulava uma sala de uma casa da classe alta do século XIX e um figurino adequado à época retratada, o público pôde conviver alguns momentos com a casmurrice de Dona Leonor, com a argúcia de Dona Helena, com os encantamentos adolescentes de Dona Cecília e com as dúvidas de um barão que acreditar ser a ciência e a razão mais fortes que as emoções que emanam do contato com pessoas que compartilham as verdadeiras experiências da vida.

                Tanto no texto quanto na representação, o protagonismo recai sobre as três figuras femininas tão díspares entre si, mas que, no conjunto, simbolizam a essência das mulheres de uma época em que a ciência tentava imperar sobre os sentimentos, como se a vida pudesse ser vista como uma ciência exata.

                No palco as atrizes e o ator desempenharam bem cada um dos papéis, fazendo com que um texto aparentemente anacrônico fizesse parte do dia a dia de jovens que mal começam a dar os primeiros passos rumo a um futuro ainda incerto.

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Muleque Té Doido, uma sequência dinamitadora

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         Desde o dia 24 de janeiro deste nosso 2019, está em cartaz nos cinemas de São Luís do Maranhão em algumas salas de outras cidades, o filme Moleque té doido – mais doido ainda, a terceira parte de um projeto chegou a público em 2014, com a estrei de Moleque té doido – o filme e que teve sequência em 2016, com Moleque té doido – A lenda de Dom Sebastião, com roteiro e direção de Erlanes Duarte.

         Mas quem está sentado na poltrona do cinema, divertindo-se com as aventuras do quarteto Erlanes, Nikima, Sorriso e Guida Guevara, talvez nem imagine o longo trajeto percorrido não apenas por essa trupe, mas por toda a cinematografia maranhense até chegar à condição de todos os atores, figurantes e demais envolvidos na produção do filme serem recebidos como verdadeiras estrelas por onde têm passado.

         Antes de tecer alguns breves comentários sobre o filme, é importante lembrar que todo sucesso (e mesmo os fracassos) tem seus antecedentes e seus históricos de lutas de sacrifícios.

         Produzir um filme não deve ser uma tarefa fácil. Além dos esforços para a captação de recursos e dos entraves burocráticos, os idealizadores ainda precisam lidar com inúmeros outros obstáculos até conseguirem ver o resultado de seus esforços projetados em uma tela de cinema ou TV ou pelo menos reproduzidos na internet.

         Em um estado como nosso Maranhão, que, embora seja conhecido como terra de artistas talentosos, também se notabiliza, infelizmente, pelo baixíssimo IDH, pela precariedade de recursos pecuniários e por uma problemática distribuição de renda, essa tarefa parece tornar-se ainda mais árdua.

         Mesmo assim, não são poucos os artistas que têm se aventurado pela seara cinematográfica no Maranhão. No começo era um grupo pequeno, formado pioneiros, como, para citar apenas um exemplo, o professor Murilo Santos. Aos poucos, o número de cineastas (quase todos amadores) foi crescendo até colocar o Maranhão na rota da arte cinematográfica. Hoje, quase no final da segunda década do século XXI, o Estado já conta com certa tradição na produção de filmes de curta-metragem e documentários. Da mesma forma, alguns diretores, atores, roteiristas e produtores começam a despontar como referência não apenas dentro do Estado, mas também em outras unidades da federação e até mesmo em outros países.

         Diversos motivos, técnicos, econômicos e até motivacionais, no entanto, fizeram com que a produção de filmes de longa duração não acompanhasse o mesmo ritmo dos curtas. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, alguns cineastas conseguiram projetar seus trabalhos dentro e fora do Estado, é o caso do bastante premiado Frederico Machado (O Exercício do Caos; O Signo das Tetas; Lamparina da Aurora; As Órbitas da Água; Boi de Lágrimas), que tem sido constantemente elogiado por seu trabalho autoral e pelo olhar poético/existencial que imprime em suas obras. No campo da comédia de apelo mais popular, possivelmente o primeiro a levar o público maranhense às gargalhadas em uma produção predominantemente local foi Cícero Filho (Ai que Vida!; Entre o Amor e a Razão; Flor de Abril), que em sua primeira produção (o muitas vezes imitado Ai, que Vida!), abriu caminho para um gênero cinematográfico em terras maranhenses. Seguindo a linha de filmes de baixo custo, Altemar Lima e Edvan Santos, da cidade de Pio XII, produziram Jack Chany do Nordeste – O Resgate, um pastiche de filmes de ação feito de forma simples e bem-humorada, mas com centrada em cópias não oficiais e divulgação na internet.

         Porém, desde 2014, o filme que a princípio foi visto com desconfiança, mas que rapidamente caiu no gosto do povo foi Muleque té Doido, que agora, como foi dito antes, chega a seu terceiro momento, cercado de expectativas e já com um respeitável número de fãs. As salas de cinema lotadas, ingressos esgotados para algumas sessões, a euforia da plateia durante as exibições são indicadores de que o projeto deu certo e que o filme já é um marco na história do cinema maranhense.

         Fui ver o filme.

         Sem dúvida alguma, a produção técnica deste filme supera em muito a dos dois anteriores, os efeitos especiais estão mais elaborados e as cenas menos repetitivas. Outro ponto positivo é o fato de a duração ser apenas de pouco mais de uma hora e meia (os primeiros têm cerca de duas horas, com algumas cenas desnecessárias e/ou redundantes). As cenas iniciais, tomadas em uma perspectiva panorâmica, são um verdadeiro cartão de visita tanto para os maranhenses quanto para quem ainda não conhece o Estado e sua capital. Esse interesse em divulgar os pontos históricos e turísticos torna-se bastante evidente na movimentação das personagens, que acabam seguindo um roteiro de visitação por locais estratégicos tanto para a narração quanto para a montagem da fotografia, de bom gosto, por sinal.

         Como as falas e ações do quarteto principal já são esperadas por quem vem acompanhando a trajetória da franquia, neste filme, o diretor desloucou um pouco das ações para personagens tidas como secundárias, mas que foram exploradas de forma mais coerente, sem perder de vista o tom de humor. Exemplo disso é a participação da Louca do Rio Anil e da Manguda, que deixaram de ter apenas uma sequência de aparições fortuitas, para fazerem parte do enredo, com influência no desenvolvimento da narrativa central.

          Como atuação das personagens centrais (Erlanes, Guida Guevara, Nikima e Sorriso) não pode – e nem deve – sair de um padrão já estabelecidos pelos filmes anteriores e que juntam estereótipo com estilo de vida tipificados, o diretor optou por dividir a relevância de algumas cenas com outros atores, e o efeito foi muito bom, levando o público às gargalhadas como no caso de sequência com os indígenas, na qual as tiradas verbais casam perfeitamente com as cenas, com destaque para a  cena das mangas (que já foi explorada anteriormente, mas que ganhou mais força cênica) e para a da doação feita pelo chefe (muito bem representado pelo veterano ator Feliciano Popó, já imortalizado como Zé Leitão do Ai, que Vida!) a Sorriso. Cena impagável.

Outro momento antológico foi o da referência ao filme Brinquedo Assassino. Em poucos segundos, a tensão e o humor se misturam de modo brilhante. O ator que vive o Maiobinha também mereceu um destaque especial, principalmente ao se camuflar com uma das esculturas das mulatas na famosa janela do Centro Histórico. Destaque também para os atores da Companhia Okasajo (Evaldo Lima, Whalassy Oliveira e Rogério Benício), que protagonizaram uma excelente sequência de ações de falas digna de muitos aplausos.

Em termos de profundidade técnica, a atuação de Márcio Amaral (com Átilla) é irretocável. Embora o papel a princípio não ofereça muitas dificuldades para um ator experiente, em alguns momentos todas as atenções são voltadas para essa personagem fulcral, exigindo uma tonalidade de voz e uma consciência corporal para fazer o contraste com o humor desbragado das demais personagens.

Enfim, Muleque té doido – mais doido ainda corresponde às expectativas de filme com limitações de recursos técnicos e financeiros, mas que conta com os esforços e o trabalho árduo de seus realizadores, atores e pessoal de apoio. Interessante notar que há um esforço de expandir horizontes, mas sem deixar de lado as raízes, com o interesse constante de mostrar a cultura, as brincadeiras, o linguajar, as lendas e a história de um povo que começa a se reconhecer nas grandes telas do cinema.

Vale a pena conferir o filme. Mesmo a pessoa mais casmurra, em algum momento da projeção, irá esquecer o mal humor e soltar uma boa gargalhada.

 

 

UMA SEXTA-FEIRA ENGRAÇADA

José Neres

 

       Um pai de família morre. E, durante as despedidas no cemitério interiorano, a família do falecido, chocada, presencia uma cena inusitada: o farmacêutico do lugarejo, tentando cumprir uma lei da época, aparece pedindo para os parentes do morto abrirem o caixão para que um pedaço do fígado do falecido fosse retirado a fim de proceder os devidos exames. Diante da recusa e da violenta reação da família do defunto, o farmacêutico procura a polícia para reclamar da obstrução recebida.

       A partir daí a confusão está formada.

       Esse é o mote para o filme Uma Sexta-Feira em 1940, produzido e dirigido por Inaldo Lisboa e que foi exibido na noite de sábado na sessão não competitiva do Festival Maranhão na Tela e que levou o público às gargalhadas.

       A história, que segundo o diretor e os créditos do filme, foi inspirada em acontecimentos reais, é ambientada na cidade de Itapecuru na quase metade do século XX. Além de se preocupar com busca de locações que desse ao espectador a sensação de estar na década de 40, Inaldo Lisboa também se preocupou em adequar a linguagem das personagens ao vocabulário típico do Maranhão, com bastante ênfase no enigmático hem-hem, que aparece diversas vezes com as mais diferentes acepções.

       O enredo é linear e as peripécias não exigem muito do espectador, que acaba ficando preso na forma de narrar os fatos escolhida pelo diretor. Os atores e atrizes conseguem interpretar suas personagens com competência e não disputam entre si pela primazia de aparecer na tela, sendo que algumas figuras poderiam até ser mais exploradas para potencializar a carga de humor exalada pela obra. Os destaques vão para José Inácio – excelente no papel do delegado, em uma atuação firme e consistente; para o ator (cujo nome não consegui ver) que faz o papel de Abdala Buzar, que consegue mesclar seriedade e humor em um dose bastante equilibrada; Marcos Dominici, que aparece pouco, mas é fulcral para o desenrolar do enredo e para Lucas Diniz, que também aparece pouco em cena, mas que traz um toque refinado de humor durante as cenas dentro da cela.

Outros pontos a destacar no filme é a montagem bem feita com boas transições de cena e a fotografia que dialoga com a rusticidade do enredo e da época retratada.

Uma Sexta-Feira em 1940 é uma prova de que é possível produzir arte com parcos recursos, mas com muita boa vontade e uma dose de coragem.

 

UM BEIJO NA TELA DO BOM GOSTO

José Neres

Romancista. Teatrólogo. Contista. Jornalista. Cronista... Nelson Rodrigues foi um dos mais importantes homens de letras da segunda metade do século XX na Literatura Brasileira.

Seus textos, de estilo ágil e dinâmico,  sempre foram bastante propícios a adaptações para outras linguagem e para veiculação em diversos meios de comunicação, arrebatando multidões de admiradores ao mesmo tempo em que suas temáticas fortes, abordando situações inusitadas para os quais nem sempre seus contemporâneos estavam preparados lavaram-no a ser visto com desconfiança por uns e incompreendido por tantas outras pessoas.

Quando faleceu, em dezembro de 1980, aos 68 anos, Nelson Rodrigues deixou para a posteridade uma enorme quantidade de textos em diversos gêneros, saudades em seus admiradores, alívio em seus detratores e uma grande dúvida em inúmeras pessoas: ele foi um louco ou um gênio.

Recentemente, a ideia de que o autor de O Casamento havia sido um gênio vem ganhando projeção, mas durante muito tempo algumas pessoas preferiram confundir os posicionamentos políticos do autor com sua obra a buscarem uma leitura mais profunda de seus textos. Escolhas inadequadas que nem sempre valorizavam as nuances de seus textos e que exploravam a vida do homem em detrimento de sua obra de arte.

A popularidade do autor de Vestido de Noiva aumentou bastante a partir do momento em que muitas de suas obras acabaram sendo adaptadas para a televisão e para o cinema, fazendo com que pessoas que não tinham acesso aos livros passassem a consumir suas histórias pelas telas da TV, do cinema e mais recentemente de computadores tabletes, celulares e de outros aparelhos que permitam transmissão de som e de imagem.

Filmes como Bonitinha mas Ordinária, O Beijo no Asfalto, A Dama do Lotação, Os Sete Gatinhos, Engraçadinha e tantos outros foram vistos por milhares de pessoas, causando espanto e admiração, levantando debates e questionamentos. Porém, de uma forma ou de outra, as polêmicas adaptações serviram para solidificar a imagem do escritor perante seus admiradores e para aumentar a antiga e sáfara discussão sobre o fato de o filme ser ou não melhor que o livro.

Como admirador da obra rodrigueana, não pude deixar de ir à estreia da nova versão cinematográfica de O Beijo no Asfalto, produzida e dirigida pelo consagrado ator Murilo Benício, que depois de atuar em filmes e novelas resolveu experimentar a sensação de estar do outro lado produção.

O filme foi exibido neste feriado de 15 de novembro durante a noite de estreia do já tradicional Festival Maranhão na Tela, este ano realizado em um shopping de São Luís. Ao ficar sabendo dessa nova versão de um dos mais interessantes textos de Nelson Rodrigues, imaginei logo que se trataria de um remake do filme produzido no início da década de 80 do século XX, com Ney Latorraca, Tarcísio Meira, Lídia Brondi, Christiane Torloni, Oswaldo Loureiro e outros grandes atores do cinema nacional.

Enganei-me.

Ao começar o filme o que todos os presentes puderam ver foi um impressionante jogo de metalinguagem, intersemiose e de talento. Talento por parte dos atores – atuações brilhantes de Lázaro Ramos, Débora Falabella, Octávio Müller, Stênio Garcia, Luiza Tiso e Fernanda Montenegro, entre outros. Talento por parte do diretor, que soube conduzir com maestria todo o enredo e levar plateia a “conviver” com os dramas interiores das personagens. Talento por parte de toda uma equipe técnica simplesmente impecável.

Não podemos dizer que Murilo Benício estreou bem na função de diretor de cinema. Na verdade, ele estreou de forma magnífica. Escolheu um ótimo texto, selecionou um elenco de primeira linha, arregimentou uma excelente equipe técnica e encontrou soluções bastante interessantes para a montagem das cenas que mesclas as linguagens e concepções da literatura, do cinema e do teatro em uma sequência praticamente perfeita de cenas que se encaixam em um grande quebra-cabeça narrativo.

Logo no início o espectador se depara com os atores reunidos em torno de uma mesa, fazendo a leitura da peça, ensaiando e discutindo os rumos que serão tomados a seguir. O grupo é de certa forma capitaneado pelo excelente Amir Haddad, que disserta sobre o estilo de Nelson Rodrigues e tece algumas considerações sobre o texto da peça.

A partir de determinado ponto, o diretor conseguiu mesclar esse “ensaio” com trechos da narrativa rodrigueana. Em alguns momentos, não pude deixar de não pensar no filme Bodas de Sangue, dirigido por Carlos Saura, que fez algo parecido com a obra de García Lorca, mas com menos intensidade e densidade do que Murilo Benício fez com a peça de Nelson Rodrigues.

E escolha pela filmagem em branco e preto não apenas deu um charme especial para o filme, mas também se tornou uma forma de explorar os espaços, os jogos de luz e sombra e os closes nas personagens, aumentando a tensão que desemboca em um clímax e um desfecho tipicamente rodrigueanos.

Mesmo seguindo pari-passu as falas desenhadas e projetadas pelo teatrólogo, o cineasta conseguiu imprimir uma dinâmica diferenciada para apresentar as personagens ao público. As revelações vêm aos poucos e deixam a sensação de que um texto escrito há quase seis décadas continua atual, apesar de uma temática central que aparentemente não causaria tanto impacto na sociedade moderna.

As relações familiares, os jogos de intriga, a polícia, a imprensa, o clima de verdades alternativas e as humilhações que temos de engolir no dia a dia são algumas marcas dos textos de Nelson Rodrigues e que tanto o diretor quanto as personagens conseguiram captar e transmitir para o público vários momentos de catarse.

Sendo fiel ao texto original em suas falas e até nas insinuações de rubricas, o filme não traz novidades para os leitores de Nelson Rodrigues, porém, mesmo quem já devorou diversas obras do autor deve ficar extasiado com a sensibilidade dessa novar versão.

O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, é um daqueles filmes que enriquece e torna mais grandiosa ainda a figura do autor do texto original e demonstra que é possível ser duro e sensível ao mesmo tempo. É um dos bons filmes desse nosso tão massacrado e desvalorizado cinema nacional.

 

 

FRATURAS SOCIAIS NO PALCO

José Neres

 

       Às vezes, a linha que separa as aparências da essência se torna algo tênue e praticamente sem sentido para algumas pessoas que não conseguem (ou não querem) perceber essa diferença. Sorrisos, gargalhadas, gestos, olhares, roupas, ornamentos e constantes atividades sociais podem ser vistos como manifestações de felicidade e de contentamento, mas também podem ser usados como disfarces para a não demonstração de uma incômoda realidade.

       A arte é um excelente meio de fazer o homem perceber que as aparências podem enganar até mesmo os olhares mais atentos e que por trás de uma festa e de mil sorrisos podem se esconder conflitos internos e mesmo algumas fraturas sociais disfarçadas uma bela fachada de convívios aparentemente saudáveis.

       É um pouco disso o que se vê na Peça O Casamento, dirigida por Charles Melo e que está em cartaz na Sala Sated, no Centro Histórico de São Luís do Maranhão. Trata-se de uma adaptação e atualização do conhecido texto O Casamento do Pequeno Burguês, escrito por Bertolt Brecht, que veio à luz em 1919, quando o dramaturgo alemão, dava seus passos iniciais no campo do teatro.

       Ávido leitor e bastante experiente nas lides com as artes cênicas, Charles Melo adaptou a peça e trouxe para a atualidade algumas discussões que merecem atenção e que são atemporais. A trama foi organizada de modo a fazer a relação entre as personagens partir de amenidades até atingir um alto nível de tensão. Durante as comemorações de um casamento, os noivos recebem seus convidados e, depois dos elogios formais de praxe e das tentativas do pai da noiva em contar suas histórias, as máscaras vão caindo e a plateia começa a entrar em contato com outras facetas das personagens.

       À medida que o álcool, os ciúmes e as angústias vão tomando conta da consciência dos presentes na festa, as verdades até então escondidas começam a aparecer e segredos há muito escondidos ganham projeção nas falas, nos gestos e no comportamento geral de todos. O jogo de troca de olhares entre os atores é digno de todos os elogios e essa cumplicidade se torna parte importante no desenrolar das cenas.

       A minuciosa disposição da mesa, do sofá, das cadeiras e dos demais objetos que compõem o cenário – tudo organizado para otimizar a utilização máxima do reduzido espaço da Sala Sated - favorece à atuação dos atores nas cenas em que a atuação depende basicamente da voz e da expressividade física dos atores, mas se torna um obstáculo nos momentos em que a movimentação corporal se torna necessária, mas isso não chega a interferir no andamento da peça, pois todos tinham total domínio sobre a marcação das cenas e dos espaços que poderiam ser ocupados.

       A atuação de todos os atores foi impecável, mas impossível não destacar a brilhante performance, a inflexão e a gradação de voz de Antônio Garcia, que vive na peça o pai da noiva. Suas falas servem como gancho para a atuação dos demais atores e eles conseguiu dosar de forma equilibrada os momentos de humor e os trechos em que era exigida uma carga dramática mais densa.

       Outro que se destaca bastante é Luciano Ferrgar, responsável por um dos momentos mais belos do espetáculo, quando recebe a notícia da amiga recém-assassinada e que toma para si todas as atenções em um excelente jogo de expressões faciais. A cena traz à tona várias reflexões e "casa" muito bem com as imagens trágicas que foram projetadas chamando atenção para um sério problema que precisa ser resolvido, mas que nem sempre é divulgado.

       O diretor Charles Melo não se contentou em adaptar uma peça de caráter universalista e decidiu imiscuir nela temas que são próprios de nossa chamada pós-modernidade, expondo diversas fraturas sociais que saem do campo familiar e atingem de alguma forma a todos os que buscam ver além das aparências e se dispuserem a assistir à peça. Por sinal, um belo espetáculo!

      

DIREÇÃO E ADAPTAÇÃO DE TEXTO: Charles Melo

ATORES: Maria Itskovich, Ruan do Vale, Luciano Ferrgar, Thaylon Diniz, Antônio Garcia.

 

 

Violência em tons de aquarela

José Neres

       Ano após ano, a produção cinematográfica maranhense vem crescendo e se desenvolvendo. E isso não pode ser resumindo a uma mera questão numérica com relação à quantidade de obras de diversas metragens lançadas por produtores profissionais ou amadores em nosso Estado. Essa evolução se dá também do ponto de vista de roteiros cada vez mais elaborados, das técnicas cotidianamente aprimoradas e no constante aparecimento de novos atores, atrizes, diretores e de outras pessoas envolvidas o processo de concepção, realização, gravação, montagem e disponibilização de filmes. Tudo isso vem acontecendo de modo paulatino e sem necessariamente desmerecer ou renegar os pioneiros e desbravadores da sétima arte no Estado.

       Há boas produções para todos os gostos. Algumas ganham projeção nacional ou mesmo internacional. Outras tornam conhecidas somente em um território restrito. Há também os filmes que são vistos, analisados e cultuados apenas entre os estudiosos do assunto. Alguns filmes participam de festivais e são laureados, mas também há aqueles que são feitos de forma artesanal ou experimental e que circulam somente em bairros ou cidades específicas. Algumas produções arrebatam um bom público e transformam atores, diretores e produtores em celebridades. Outras, no entanto, são vistas como mera curiosidade histórica. Mas em todos os casos o desejo de fazer arte é o fio que leva tantas pessoas a dedicaram seu tempo à bela, porém árdua tarefa de encantar uma plateia diante da tela.

       Como gosto muito das produções locais e acredito que devemos conhecer e reconhecer os valores que andam ao nosso lado no dia a dia, sempre que posso vou prestigiar um de nossos filmes. Então, mesmo cansado depois de uma maratona de aulas, atendi ao convite público feito nas redes sociais para a pré-estreia do curta metragem Aquarela, nesta segunda-feira, 13 de agosto.

       A primeira notícia boa foi chegar e ver uma imensa quantidade de pessoas dispostas a enfrentarem uma fila para pegar o ingresso e outra para adentrar ao Cine Praia Grande em uma das três sessões em que se desdobrou o lançamento do filme maranhense que estará concorrendo no Festival de Gramado.

       Consegui um ingresso para a segunda sessão. Todos devidamente acomodados, alguns saboreando a pipoca e as bebidas oferecidas pelos organizadores. Logo após a exposição de alguns vídeos informativos, uma aquarela começou a se desenhar na retina dos espectadores. Silêncio! Somente a trilha sonora e a fala das personagens passaram a importar nos breves minutos de projeção.

       Na tela, a tensão percorria cada segundo de um enredo fragmentando, mas que não exige muito esforço do público para alinhar a ordem dos acontecimentos. No roteiro, uma indagação: até que ponto uma mulher é capaz de se sacrificar para tentar proteger a vida do homem a quem ama e que está cumprindo pena em uma penitenciária controlada por regras próprias? Várias são as respostas possíveis no dia a dia. Aquarela traz ao público apenas uma dessas decisões que podem ser tomadas em um momento de desespero.

       Os quatro atores principais atuam em conjunto de tal forma que nenhum tenta superar a atuação do outro. Todos colaboram para que o grande vencedor seja o próprio filme. O experiente Urias de Oliveira encarna o mal, a falta de limites e o oportunismo em uma só pessoa, sua participação é rápida, seca, consistente e contundente. Al Danúzio, que interpreta o marido preso, encanta a plateia com um misto de fragilidade, importância e heroísmo, vivendo na pele o paradoxo de agredir e afastar-se das pessoas amada para só assim protegê-las. Em Rosa Ewerton Jara, o olhar firme e triste e os gestos contidos demonstram uma fortaleza que tenta não desmoronar diante de uma vida despedaçada. A atriz consegue transmitir para o público as dores e angústias de sua personagem. Finalmente, a exuberante atuação de Luna Gandra, cuja personagem vive em um mundo de conflitos interiores e exteriores e para quem o amor pela família deve ser colocado acima até mesmo do próprio bem-estar, do amor próprio e do orgulho ferido. O jogo de olhares e de silêncios do filme é um dos pontos altos do quarteto de atores. Frame a frame, eles conseguem levar o público para dentro das misérias humanas, despertando um misto de sentimentos que se mesclam no decorrer das cenas.

       A cenografia, a maquiagem e a sonoplastia apresentam destaque à parte. Os efeitos sonoros e as músicas se encaixam nos dramas vividos pelas personagens e, possivelmente até mesmo de forma irônica, o predomínio da cor azul em algumas sequências do filme serve como contraste com a composição dos ambientes, nos quais imperam a miséria, a pobreza e a fragmentação dos espaços.

       As cenas de violência física são contidas e exploradas com parcimônia. Em alguns momentos a sugestão supera a encenação, mas isso também parece fazer parte dos objetivos dos responsáveis pela direção e pela montagem. Mesmo apresentado um grau elevado de previsibilidade, em alguns momentos o filme pode fazer a plateia prender a respiração e compartilhar de uma ligação empática com as personagens, principalmente com relação à Ana (personagem de Luna Gandra) e Marcelo (vivido por Al Danúzio).

       Aquarela é um filme cujo enredo teria fôlego para ser um longa metragem. Cada passagem de cena é metaforicamente uma pincelada em cores pálidas, contudo vivas buscando traçar um painel social que, infelizmente, é real e cruel.

        Mais uma prova de que nosso cinema pode ter um belo futuro pela frente.

 

 

 

 

TRÊS VIZINHAS E UM MISTÉRIO NO TEATRO

José Neres

 

Fonte da imagem: Internet

         Ontem, quase no apagar das luzes, aproveitando que iria para o lançamento do livro do poeta Neurivan Sousa, fui assistir à aclamada peça As Vizinhas e o Misterioso Caso do Maníaco das Unhas, no Teatro da Associação dos Escritores Independentes do Maranhão (AMEI).

            Logo na entrada, encontrei vários amigos e conhecidos de longas datas a quem nem sempre tenho o prazer de ver. Foi bom ver uma fila de pessoas querendo assistir a um espetáculo cênico produzido e encenado por nosso povo. O público praticamente lotou o aconchegante espaço e se divertiu muito com as peripécias protagonizadas pelas três vizinhas, moradoras de um bairro de classe baixa e que têm a vida interligada por conflitos, pobreza, mistérios e hipocrisia de todos os lados.

            O texto, assinado pelo jovem Fernando Braga, mesmo apresentando certo grau de previsibilidade em seu desfecho, foi muito bem escrito e favorece à representação das atrizes, mesclando passagens do cotidiano dos moradores de São Luís com o mistério que acaba envolvendo o trio. O vocabulário é propositadamente centrado no falar maranhense, o que arranca boas gargalhadas da plateia e traz à lembrança algumas palavras que de tanto fazerem parte de nosso cotidiano só são percebidas quando expostas no palco em forma de arte.

            O cenário foi extremamente adequado ao espetáculo, com três janelas que, simbolicamente, remetem às tradicionais moradias maranhenses, com suas animadas e intermináveis conversas trocadas ou de janela em janela ou na porta de casa. E o enredo é simples e eficiente. Três vizinhas compõem o elenco: uma senhora desbocada, uma recém-convertida religiosa e uma dona de casa aparentemente tradicional. Todas elas passam por necessidades financeiras e familiares, mas tentam mostrar opulência e normalidade diante das colegas.

            As atrizes foram brilhantes em suas representações, com destaque especial para Helena Travassos, que hipnotizou a plateia com sua performance praticamente perfeita, com sua expressividade corporal e excelente domínio do movimento no palco. Na verdade, o trio se completa e cada uma delas tem seu momento próprio de brilho sem necessidade de tentar eclipsar uma à outra.

            Como o texto é relativamente curto, com uma representação de pouco mais de quarenta minutos, não dá tempo para a plateia se dispersar ou ser perder nas tramas. Quando o mistério é desfeito, em um ótimo momento de jogo de luz e voz, a peça descamba logo para a parte final, sem precisar se alongar em explicações desnecessárias. Os mínimos detalhes colocados em cada um dos sacos pretos são de uma sutileza de muita relevância para a trama e para o desfecho.

            O tema, além de tocar em pontos do cotidiano maranhense – e brasileiro também – pode ser considerado universalizante, pois trata da hipocrisia humana, e esta não tem limite de tempo ou de fronteiras.

            Peça muito boa. Espero que volte em outra temporada para que mais pessoas possam se divertir com esse mistério dividido entre as três espetaculares vizinhas suburbanas.

Créditos

PRODUÇÃO: Rodapé Companhia de Teatro/Edilson Brito

TEXTO: Fernando Braga

Iluminação e Assistente de Direção: Ivone Coelho

Sonoplastia: Marcos Belfort

Elenco: Elena Travassos, Ione Coelho e Diana Mattos

UM OLHAR SOBRE NOSSAS ARTES PLÁSTICAS

José Neres

 

       Que fazer em um shopping? Muitas pessoas não pensariam duas vezes em responder com o verbo comprar em alguns de seus tempos, pessoas e modos. Contudo, embora seja visto como principal templo pós-moderno de consumismo e de efemeridades, não são raras as vezes em que um passeio pelo shopping pode se transformar em um prazeroso momento de aprendizagem e de afinamento de gosto estético.

            Sábado passado, logo depois de comparecer ao lançamento do livro dos amigos Félix Alberto Lima, Sebastião Moreira Duarte e Benedito Buzar, parei alguns momentos para admirar a exposição de quadros de artistas maranhenses.

            Logo na entrada, fui muito bem recebido pela marchand Silvânia Tamer, a quem havia sido apresentado minutos antes. Essas são as belezas das coincidências que alegram nossa passagem pela terra! Acaba-se de conhecer a pessoa e ganha-se a oportunidade de entrar em contato com seu trabalho.

             Acompanho com certa atenção o que ocorre com as artes de meu Estado e sei que nem sempre as obras dos grandes pintores podem estar ao alcance do poder aquisitivo da maioria das pessoas. Mas sei também que olhos educados podem degustar uma exposição aberta ao público com o mesmo interesse com que aproveitamos os bons momentos da vida.

 O que vi ali vai além do que pode ser explicado com palavras... Era uma exposição coletiva de cinco extraordinários artista: Botêlho, Rogério Martins, Fransoufer, Ednilson Costa e Victor Rêgo.

Expostos com elegância, os quadros, mesmo sendo produzidos por autores de estilos diferentes e com técnicas de produção diferenciadas, pareciam dialogar entre si na busca de um equilíbrio entre o homem, a cultura e a natureza.

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Nas pinturas de Victor Rego, o contraste entre as muitas realidades que compõem o cenário urbano, seja ele no centro da cidade, em uma favela ou na fresta de modernidade que se mostra por trás de um manguezal leva o visitante a inúmeras reflexões. Os traços são uma mescla entre a delicadeza das formas sutis e a força que emana de uma realidade que não pode ser escondida.

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Eu não conhecia a obra de Ednilson Costa, mas fiquei deveras impressionado com os traços aparentemente rápidos que simulam os movimentos de seres humanos em ação, ora em uma partida de futebol, ora em uma visita à igreja. Usando cores fortes e preocupando-se com a simbologia das formas do que com o realismo das imagens, o artista brinca com as impressões de movimento que emanam de suas telas.

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Outro de quem eu já havia ouvido falar, mas de quem ainda não tinha visto as telas ao vivo é o pintor Botêlho. Seu domínio técnico do jogo de luzes e de sombras encanta a retina que quem para observar os detalhes mínimos que são explorados a partir de sobreposições de cores fortes em contraste as sobras projetadas pela fusão das imagens. O efeito disso é espetacular e realça (e multiplica) a beleza do ponto escolhido para ser artisticamente retratado.

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De todos os artistas expostos, o que eu conhecia mais de perto era Fransoufer. Pintor de formas e cores vibrantes e que explora motivos variados, que vão desde a religiosidade até aspectos culturais do Maranhão. Nos quadros expostos, a imbricação entre pássaros e seres humanos, com ênfase também na flora, demostra uma preocupação com a natureza em com a necessária harmonia entre os seres vivos.

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Rogério Martins também não me era desconhecido. Artista pelo qual nutro grande admiração, traz na exposição como motivo central as portas e janelas de nossos casarões históricos. Sua técnica leva o visitante a ter uma sensação de estar diante do prédio retratado e não de um quadro. Os ângulos escolhidos e as perspectivas aludidas remetem tanto à glória quanto à decadência de um patrimônio que precisa ser melhor preservado.

Não sei por quanto tempo ainda a exposição ficará no local. Mas tenho certeza de que quem gastar alguns minutinhos de seu precioso tempo não se arrependerá de mergulhar nas riquezas de uma arte que sempre surpreende. Como naturalmente, depois da terminada a exposição, os quadros irão para a sala de seus felizes compradores, acredito que seja uma boa sugestão guardar nas retinas e na memória um pouco desse imenso prazer que é compartilhar impressões sobre nossa arte.

Mesmo que nem todo mundo concorde, Shopping também pode (e deve) ser uma fonte de cultura.

OBS: As imagens que ilustram este artigo não correspondem às que estão na exposição. 

 

DE OZ PARA OS PALCOS

José Neres

 

 

            A queda de energia elétrica durante um ou dois minutos pode até mesmo passar despercebido, dependendo da ocasião, para a maioria das pessoas. O que fazer nesse curto intervalo de tempo? Depende. Mas e quando isso ocorre em pleno decorrer de um espetáculo teatral, com os atores no palco e toda a plateia atenta às palavras, aos gestos e à movimentação dos atores?

            Já vi um caso assim em que os atores se desculparam, o diretor pediu a palavra e disse que tão logo as providências fossem tomadas, o espetáculo voltaria. Porém não foram essas as providências tomadas neste sábado (24.02) durante a segunda sessão da peça O Mágico de Oz, no teatro da AMEI. O diretor não teve tempo de tomar a palavra e tentar contornar o problema. Não pelo fato de a energia elétrica haver retornado minutos depois, mas sim por que estavam no palco jovens atores que fizeram uso de um outro tipo de energia que nem tem faltado em nossos eventos: a criatividade.

            Os atores que estavam em atuação no momento, simplesmente ignoraram o contratempo e aproveitaram para iluminar o cenário com o brilho de quem sabe que o teatro é mágico e que o “caminho de tijolos amarelos” da vida real é cheio de obstáculo e quase sempre tem muitas pedras que precisam ser superados com trabalho, ensaios constantes, disciplina e muita dedicação.

            Como estamos em tempos de hipermodernidade, segundos depois da queda de energia elétrica, as lanternas de diversos aparelhos celulares emprestaram suas luzes para que a plateia acompanhasse a encenação. Mas o que mais chamou a atenção foi o que aconteceu no mínimo intervalo entre e escuridão total e o sacar dos celulares. Os dois atores que estavam em cena mostraram o porquê de o nome da companhia da qual fazem parte ser Grupo Teatro Improviso. Mas não agiram como um mero grupo, e sim como uma equipe, respeitaram a magia do teatro e souberam improvisar, aproveitando inclusive para pôr alguns “cacos” referentes ao incidente no decorrer da representação.

            E a peça? O Mágico de Oz é uma história já bastante conhecida que fala sobre companheirismo, coragem e busca constante do próprio eu. Sendo já muito reproduzido pela literatura, pelo cinema e mesmo pelo teatro, o enredo traz muitos desafios aos encenadores, iluminadores, diretores e atores que se proponham a levar aos palcos uma narrativa conhecida com um ar de novidade. Contudo, os responsáveis diretos pela versão que está em cartaz souberam dinamizar o espetáculo utilizando a técnica de colocar o público como parte da encenação a partir da constante busca de interação entre os atores e a plateia, formada por pessoas de variadas idades.

            Alguns detalhes quase imperceptíveis ajudaram a compor o mundo mágico de Oz no palco. Um deles é a sincronia entre as ações e as falas. Outro foi a exploração racional de um cenário minimalista que ocupa o mínimo espaço físico, mas com grande apelo visual. Em um rápido jogo de cena, o castelo do Mágico se descortina aos olhos do público, que encontra o local ao mesmo tempo em que os quatro amigos que vagam em busca de um cérebro, de coragem, de um coração e do caminho de volta para casa. Outro recurso interessante foi a presença dos dois músicos estrategicamente situados nas duas extremidades do tablado, servindo tanto para executar a trilha sonora quanto como improvisados corifeus que puxam a plateia para a interatividade com o público.

            Os atores, todos muito jovens, são um caso à parte. Reclama-se muito que a juventude está perdida, que os adolescentes de hoje são dispersos e sem talento. Mas o que se viu no palco foi algo que nega essa lógica perversa e estereotipada. O Mágico de Oz (Alexandre Wes), além de bom timbre de voz, de boa expressividade e de segurança nas falas e nas ações, demonstra grande talento musical e cênico. A Doroty (Laura Neres) estava à vontade no tablado e soube interagir com o público, mesmo ainda precisando trabalhar a espacialidade, demonstrou excelentes recursos técnicos quanto ao domínio da expressividade corporal e facial. A bruxa (Ana Lídia Sousa) explorou bem a voz e soube fazer o necessário contraponto com as demais personagens, destaque também para quem fez a maquiagem e a caracterização. O Leão (Vinícius Dominici), o Homem de Lata (Dan Barreto) e o Espantalho (Mário André Lacerda), por conta do enredo, tiveram pouca participação, mas cumpriram com brilhantismo o papel destinado a cada um deles. Mas tem que haver um destaque para o Espantalho, cujo ator demostra excelente performance vocal e utiliza muito bem o gestual e a expressividade facial. A primeira cena dele com a Doroty chama a atenção pela sincronia e pela marcação extremamente necessária para o efeito de dramaticidade e de humor.

            O coordenador geral do grupo, Marcos Dominici, e o diretor Zanto Holanda, assim como toda a equipe técnica e os atores estão de parabéns. Creio que a maior prova do sucesso desse espetáculo são o brilho nos olhos das crianças e o sorriso dos adultos que, por alguns momentos puderam, de forma metafórica, colocar os pés no caminho de tijolos amarelos e reviver um pouco da infância perdida, mas que pode ser recuperada pelo brilho mágico do teatro.

 

RIDENDO CASTIGAT MORES

 José Neres

            Juntamente com Martins Pena, França Júnior foi um dos mais importantes comediógrafos da literatura romântica brasileira. Dono de um estilo em que os costumes eram ressaltados para chamar a atenção para fatos cotidianos, mas que normalmente passavam despercebidos pela maioria das pessoas da época, o dramaturgo criava situações risíveis nas quais muitas pessoas acabavam se reconhecendo, embora possivelmente negassem servir como fonte de inspiração para essas obras que discutiam, de forma leve e suave, algumas facetas menos exploradas da sociedade do século XIX.

            Um dos maiores sucessos de Joaquim José da França Júnior (1838-1890) foi a peça intitulada “Amor com Amor se Paga”, na qual a malícia e o adultério são explorados de forma irônica, levando tanto o leitor do texto impresso quanto a plateia que frequentava o teatro às gargalhadas. Ainda hoje, mais de um século depois do passamento do autor, seus textos continuam com uma aura de atualidade e podem ser lidos ou representados com a mesma vivacidade e sagacidade com que foram concebidos.

            No entanto, como hoje temas como adultério andam tão vulgarizados, fazendo inclusive parte do cotidiano de tanta gente, parece ser anacrônico o desejo de levar aos palcos um texto que nada acrescenta ao que já sabemos sobre o assunto. No entanto essa é uma característica da boa obra de arte que, como nos ensinou Ítalo Calvino, permanece atual mesmo com o passar do tempo. Embora as cenas e acontecimentos sejam singulares, as situações são universais e não se diluíram com as constantes mudanças de costumes.

            Foi provavelmente atento a essa concepção, que o professor, encenador e diretor Marcos Dominici, resolveu trazer novamente ao palco essa comédia tão antiga e tão atual ao mesmo tempo. O espetáculo aconteceu durante vários dias no miniteatro da Associação Maranhense de Escritores do Maranhão (AMEI) e, segundo o diretor, já tem outra temporada agendada para março próximo.

            Quem espera assistir a uma mera reprodução de um texto de época tem grandes surpresas durante a apresentação. Não é á toa que o nome da companhia é Improviso. O responsável pela cenografia encontrou soluções bem elaboradas para o pequeno palco do teatro e as marcações de cena pouco interferiram na movimentação dos cinco atores que vivem as personagens: Vicente – um desajeitado e loquaz empregado que serve como fio condutor da narrativa; Eduardo e Miguel – os maridos adúlteros e enganados ao mesmo tempo; Adelaide e Emília – as belas esposas que ajudam a compor os vértices do duplo triângulo amoroso.

            Diretor experiente, Dominici soube explorar bem as características de cada um dos atores em cena, adequando os tipos físicos e as vozes para cada uma das personagens da trama. A junção do texto do século XIX com tópicos e músicas do nosso século ajudou a dar maior impacto a cenas que poderiam perder o foco se viessem tal e qual foram imaginadas por França Júnior. Não apenas por atuar como ponto de convergência das tramas, mas também pela presença de palco do ator, que facilmente tirou muitos risos da plateia, a personagem que desde o primeiro momento atrai a simpatia do público é o servo Vicente.  Mesmo com alguns breves momentos em que os atores e atrizes foram traídos pela desconcentração ou pela assincronia de algumas ações, eles souberam contornar a situação com base no bom senso e da aplicação das diversas técnicas aprendidas durante os ensaios, sem prejuízo para a encenação.

            Quem foi ver o espetáculo neste último sábado de janeiro deve ter ficado satisfeito. Pela expressão nos olhos do público e pelos fartos sorrisos que eram distribuídos para/pelos foi possível perceber que todos os objetivos foram cumpridos. É muito bom também ver nossos palcos inundados por jovens atores que encarnam as personagens e ajudam a levar mais pessoas para as salas teatrais.

            Ridendo castigat mores – talvez essa velha máxima latina não tenha servido para alguns dos presentes e nem mesmo sentida pelos presentes, mas o mais importante é que um nome como França Júnior, que estava esquecido, continua alegrando a quem aprecia um bom espetáculo e inspirando diretores, atores e encenadores na busca de levar cultura e alegria ao público em geral.

 

UM ENTRECRUZAR DE FIOS NARRATIVOS

José Neres

 

                Já fazia um bom tempo que eu estava com vontade de assistir à peça teatral As Três Fiandeiras, contudo as constantes viagens e os compromissos profissionais sempre me deixavam sem condições estar presente nos dias em que o espetáculo estava em cartaz. Já conhecia o trabalho das três atrizes e do diretor/autor da peça, o que me deixava mais curioso, pois são pessoas bem preparadas e de grande talento e, certamente, o trabalho seria de bom nível. Porém, infelizmente, os comentários disponíveis quase sempre ficavam na superficialidade do gostei/não gostei e de reprodução de fotos do evento, o que vem sendo uma prática comum em nosso Estado em que a falta de textos mais críticos é uma lacuna bastante antiga.

                Aproveitando um breve instante de folga, fui neste sábado (20.01.2018) ao recentemente inaugurado miniteatro da AMEI – Associação Maranhense de Escritores Independentes. O local é aconchegante e bastante propício à apresentação de espetáculos que não exijam grande aparato cenográfico ou tecnológico, permitindo uma maior interação entre atores e a plateia. Após as acomodações e recomendações de praxe, teve início o espetáculo.

               Desde o título, o texto da peça já remete para a mitologia, mas o jovem e talentoso dramaturgo Igor Nascimento, trouxe uma roupagem diferenciada para tratar dos diversos temas que são discutidos em cerca de uma hora de representação. Mesclando elementos mitológicos clássicos com algumas lendas do imaginário maranhense, o texto mostras relações humanas que são construídas e desconstruídas ao sabor de um aparente acaso ou de um destino sobre o qual não temos controle. Relações e fraturas familiares são expostas com bom humor e com um toque de sarcasmo, sem perder o tom de seriedade, de angústia e de reflexão, marcas constantes no texto.

                O tipo de narrativa, entrelaçada com diversos nós que se bifurcam em ritmos e histórias que se cruzam, exige bastante das atrizes e ao mesmo tempo favorece à cenografia e a um figurino transmutável pelas necessidades cênicas. Em breves mudanças de postura, mudança de ou outro adereço ou inflexão de voz, as diversas personagens entravam e saíam de cena, sem causar confusão na mente de quem estivesse assistindo ao espetáculo. Utilizando a técnica do “mise en abyme”, em que as histórias se multiplicam em um jogo teatral de sucessivos abismos, cada uma das atrizes assume diversas personagens ao longo do texto, e o próprio cenário se metamorfoseia de acordo com a cena. Dessa forma, o mesmo espaço físico alcança o valor simbólico de muitas paisagens que se constroem e desconstroem diante da plateia. Teatro, embarcação, casarão abandonado, mar e casa são alguns dos ambientes simulados ao longo do texto para a composição dos dramas que se cruzam e entrecruzam em um imaginário tear de múltiplas narrativas. O diretor, ao escolher os ornamentos e marcar as cenas, soube usar muito bem a técnica de fazer o máximo usando o mínimo de recursos.

                As três atrizes – Gisele Vasconcelos, Renata Figueiredo e Rosa Ewerton – foram espetaculares ao encarnarem personagens que exigem técnica, concentração, domínio vocal, corporeidade, expressividade facial e perfeita sincronia do começo ao fim do espetáculo. Os diversos núcleos dramáticos tecem uma grande teia de fatos e de situações que mesclam as dificuldades de manter uma companhia teatral, o jogo de egos, a necessidade de inovação constante e o desejo de seguir em uma trajetória que parece ameaçada pelas dificuldades constantes. Ao mesmo tempo em que se desenvolve a saga das atrizes sem plateia, outros dramas também ficcionais das personagens recentemente criadas dividem os espaços e atenção do público. Na peça, os fios nunca estão soltos e acabam dando origem a um intrincado tecido que pode ser chamado de fantasia, ficção, aventura, drama, ou mesmo de vida.

        Deve-se observar também o competente trabalho de iluminação, que exige sincronia entre as falas, as ações e o jogo de luzes e sobras, bem como o arranjo musical, assinado por Gustavo Correia, e executado ao vivo, potencializando a atuação das atrizes e dividindo espaço com a dramaticidade do texto.

              “As Três Fiandeiras” é uma peça que merece ser apreciada. A atuação das atrizes, a cenografia, a iluminação, a música e a direção merecem todos os aplausos.

 

FERNANDO REIS NO BANCO DA PRAÇA

José Neres

 

                No início da década de 1990, a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) foi “invadida” por um grupo de jovens idealistas que, após um exaustivo processo vestibular, começava a batalha para alcançar o sonho de ter um diploma de curso superior. Na época, as oportunidades eram poucas e muitos daqueles jovens eram os primeiros membros da família a pôr os pés em uma Instituição de Ensino Superior. O Brasil ensaiava sair de um longo período de crise e a euforia tomava conta de boa parte da população. Mas quase todos aqueles jovens vinham de famílias humildes e sabiam que estudar poderia ser a única maneira de sair da pobreza material na qual estavam mergulhados.

                A alegria de poder frequentar um universo diferente daquele com o qual estavam acostumados contrastava com a falta de recursos comprar livros e até mesmo para pagar a passagem de ônibus diariamente ou mesmo para comprar o tíquete que dava direito a um almoço ou jantar no famoso RU (restaurante universitário). Alguns desses entraves eram resolvidos com criatividade. A falta de dinheiro para os livros e para as xerox era compensada com horas a fio na biblioteca; os pés ainda descansados substituíam os pneus do ônibus no trajeto entre o Anel Viário e o Bacanga; e muitas vezes as longas e animadas conversas sobre poemas, artes e cinema faziam esquecer a fome de comida. No intervalo entre o turno matutino e o vespertino, a sala DA (Diretório Acadêmico) transformava-se em um quartel-general onde aqueles garotos e garotas recuperavam as forças para mais uma sessão de estudos, pois, no caso do curso de Letras, havia aulas pela manhã e pela tarde.

                Aquela geração tinha tudo para ser apagada pela história. Porém havia alguns diferenciais que uniam muitos daqueles jovens: a vontade de vencer e a paixão pela leitura, pela literatura, pela escrita. Cerca de três décadas depois, vários daqueles nomes que antes pertenciam a pessoas anônimas, agora são importantes vultos de nossas letras, como por exemplo: Antônio Aílton (professor, poeta, ensaísta), Ricardo André Ferreira Martins (o hoje premiadíssimo poeta, prosador e ensaísta Ricardo Leão), Lindalva Barros (a hoje escritora e atriz Linda Barros), Dino Cavalcante (professor, ensaísta e coordenador do Curso de Letras da Ufma); Natanilson Campos (professor, poeta e prosador); Hagamenon de Jesus (professor e poeta), Karina Mualem (professora e poetisa), Bioque Mesito (poeta e professor), Ilza Cutrim (professora e pesquisadora),  Fernando Reis (professor, poeta e contista), entre tantos outros.

                Essas recordações saltaram à minha memória por duas vezes em menos de dez dias neste final de ano. Primeiro na posse de Antônio Ailton na Academia Ludovicense de Letras e, dias depois, ao encontrar o amigo Fernando Reis no lançamento de seu livro Banco de Praça, na livraria da Amei, na antevéspera de Natal. Adquiri o livro, pedi autógrafo e aproveitei para colocar a conversa em dia com esse rapaz que sempre se destacou não apenas pelo físico avantajado, mas também pelas polêmicas, pelo bom humor, pela paixão pelas letras e pela candura que sempre dispensou aos amigos.

                Banco de Praça (Editora Chiado, 2017) é uma daquelas obras gostosas de serem lidas. Os contos são límpidos e claros como uma bela conversa em uma praça por onde passam as figuras mais díspares e mais singulares ao mesmo tempo. Quase todas as narrativas estão centradas na área central da capital maranhense e as histórias mesclam doses de picardia, ironia e até mesmo do drama humano pelo qual todos podem passar a qualquer momento. Os textos são curtos e podem ser lidos em um fôlego, mas exigem alguma atenção por parte do leitor, pois não é apenas o factual que interessa na trama, mas sim o breve mergulho na essência humana. Cada personagem é um universo particular que se desdobra muitos microcosmos, formando um todo contínuo que espelha muito daquilo pelo qual passamos diariamente. O locus narrativo pode ser um bar, uma rua, o mercado ou mesmo um anônimo bar. Fernando Reis sabe que é por ali que verdadeira vida germina e que as múltiplas emoções pululam e se multiplicam. Nas páginas do livro, desfilam o povo simples, os bêbados, os paqueradores, os desamparados, as mulheres boazudas, os meninos de rua e toda uma leva de serem que passam por nós todos os dias, mas para os quais nem sempre temos olhos. Como todo artista, o contista maranhense aproveita sua arte para jogar luzes sobre problemas para os quais nem sempre damos atenção. Em contos como Antônio (p. 47), a alma humana é esmiuçada e as angústias pessoais entram em rota de colisão com os muitos problemas sociais com os quais nos deparamos a cada momento.

                Banco de Praça, apesar de não trazer inovações técnicas ou temáticas, é um livro que nos leva à reflexão sobre diversos temas e, ao mesmo tempo, diverte e ensina. Leitura recomendada para uma manhã de sol ou de chuva, para uma tarde sonolenta ou para distrair durante uma viagem de ônibus, para uma noite de insônia ou para ler diante de uma roda de amigos, ou seja, leitura para todas as horas e para todos os lugares.

                Sei que orgulho é um sentimento às vezes visto como negativo, mas confesso que tenho orgulho de pertencer a essa geração que transformou o vício da leitura e da escrita em uma bandeira em prol de dias melhores.

UMA SEMENTE CHAMADA SALIMP

José Neres

 

                Todos os dias, as letras, e as mais diversas formas de arte, se veem sufocadas pelas centenas de adversidades que contribuem para que livros, peças teatrais, exposições de artes plásticas, shows, palestras, mesas-redondas, performances e recitais se tornem itens raros ou até mesmo descartáveis na cesta básica da cultura que deveria adentrar nos lares brasileiros. Nem todos os membros da comunidade têm acesso a alguns aspectos da cultura e muitas pessoas, por não terem oportunidade de conviverem com a chamada cultura letrada, pensam que não podem frequentar alguns ambientes.

                Que fazer então para aproximar essa massa, muitas vezes manobrada por informações eivadas de preconceitos e de ideias desconexas, de algumas manifestações culturais que lhe parece estranhas ou mesmo sem sentido? Como inserir na vida de crianças, jovens, adultos e idosos as manifestações do mundo cotidiano em forma de arte, seja ela visual, táctil ou sonora? Como fazer esse pequeno repositório de cultura e entretenimento chamado livro deixar de ser um tabu e transformar-se em algo democratizado e que pode entrar em todos os lares, não importando a escolaridade, o nível social ou econômico? Arte e educação não podem servir para separar castas e classes, mas sim para unir pessoas.

                Salões, feiras, lançamentos e exposições de livros são eventos essenciais para levar a comunidade em geral a entrar em contato não apenas com livros, escritores e pensadores dos mais diversos gêneros e estilos, mas sim com todas as pessoas que produzem alguma modalidade artística. Embora quase sempre sejam seguidos da palavra livro (Feira de Livro, Salão de Livro) tais eventos são mais democráticos do que parecem à primeira vista e costumam reunir uma gama de artistas que transformam cada dia desses eventos em uma grande festa para os ouvidos, para os olhos e para a sensibilidade dos participantes.

                Foi esse misto entre erudição, cultura popular, festa, capacidade criativa e alegria que inundou a 15ª edição do Salão do Livro de Imperatriz, realizada de 27 de outubro a 05 de novembro de 2017, no Centro de Convenções da cidade. O evento, que já se tornou uma referência, contou com a importante participação de alguns membros da Academia Imperatrizense de Letras e com a presença de diversos produtores culturais e de algumas autoridades do meio intelectual e político.

                Durante dez dias, a população de Imperatriz, das cidades circunvizinhas e visitantes de outras localidades e até mesmo de outros estados da Federação puderam mergulhar em um mundo mágico constituído de letras, cores, imagens e muitos outros aspectos que levam o ser humano a se tornar cada dia mais humano.

                Entre as boas escolhas dos organizadores do Salão do Livro de Imperatriz está a escolha do nome do editor, escritor e historiador Adalberto Franklin como patrono do evento. Ele, que ao longo de sua vida dedicou-se a amar os livros, as pessoas e a cidade, recebeu essa justa e merecida homenagem. Outro acerto está na diversidade de expressões artísticas disponibilizadas ao longo dos dias. Quem se propôs a caminhas pelos largos corredores pôde escolher entre folhear/comprar livros, lanchar, encomendar caricaturas, conhecer os frutos dos trabalhos dos apenados que expuseram sua produção de móveis artesanais, fazer tatuagem de rena, aprender mágica, divertir-se com os palhaços, ouvir música, ver/adquirir telas, participar de recitais, bater papo com os amigos, assistir a palestras, comprar roupas e bijuterias ou simplesmente flanar pelo ambiente sem compromisso.

                Um local assim recebe um público eclético que nem sempre chega atraído pelos livros, mas que, diante de tantos títulos, pode sentir-se motivado para ingressar também no universo da palavra escrita. E essa é uma das funções de eventos como esse: ser receptivo a todos e mostrar que é possível construir um mundo melhor para cada um dos presentes que, sem obrigação de comprar um livro, assistir a uma palestra, participar de algum sarau ou aceitar algum estilo imposto, percebe que a liberdade consiste em respeitar e ser respeitado. Possivelmente alguns visitantes não tenham adquirido nenhum livro, lido nenhuma página, ou assistido a nenhuma palestra, mas acabaram transformando aqueles momentos em um grande Salão de festa cultura e troca de conhecimentos, de afeto e de simpatias. E isso não e pouco!

                Qual o resultado de um evento como o Salimp? Impossível saber logo depois do encerramento ou nos dias, semanas ou meses seguintes. Tudo o que envolve arte, educação e a essência humana carece de tempo oferecer seus frutos. Talvez, daqui a alguns anos, um daqueles menininhos ou uma daquelas menininhas cujos olhos brilhavam quando tocavam os livrinhos ou quando ouviram aquelas músicas agradáveis, ou quando cruzaram nos corredores com os muitos escritores que por ali circulavam percebam que aquele passeio foi decisivo para sua formação e as sementes jogadas hoje começam a dar frutos e se transformem em novos semeadores. E, quando nós não estivermos mais neste jardim cercado de folhas de livros, novas sementes brotarão em um ciclo sem fim.

                Mas essas sementes não podem ficar abandonadas. É preciso que professores, escolas, gestores públicos, amigos, conhecidos e as famílias reguem essas sementes, estimulando o contato com as artes em todas as suas nuances.

 

 

LILIA DINIZ, UMA BELA ARTISTA

José Neres

 

            Ainda no dia de finados, saindo do belo espetáculo de Urias de Oliveira, atravessamos a Praça Nauro Machado, infelizmente ainda mal cuidada e tomada pelo descaso, embora tenha passado recentemente por uma reforma, cruzei com um mar de gente, muitos rostos conhecidos, outros ainda não tinha tido o prazer haver visto, subi a ladeira e cheguei ao Espaço Chão, local aconchegante e que respira arte em suas mais diversas vertentes.

            Ali, após breve intervalo de tempo para as devidas acomodações da plateia, a mestre de cerimônias apresentou a poetisa, atriz e performer Lilia Diniz, artista que venho acompanhando faz um bom tempo, mas a quem não conhecia pessoalmente. Depois das apresentações de nível formal, teve início o espetáculo intitulado “Miolo de Pote em Cantiga de Versos”, realmente um show!

            Dona de voz e afinação invejáveis, durante cerca de uma hora, Lilia Diniz encantou o público com um misto bem equilibrado de recital de poesia, contação de “causos” e de música de boa qualidade. Em diversos momento, a artista soube tirar boas risadas da plateia, mas em grande parte do evento chamou a atenção para diversos temas que merecem toda a atenção por parte das autoridades constituídas e da sociedade em geral.

            Assuntos como relações familiares, devastação das florestas, mal uso dos recursos hídricos, falocracia e feminismo foram destrinçados com bom humor e intercalados com textos poéticos/musicais que serviram como complemento para os diversos momentos da intervenção artística.

            Já sabia que Lília Diniz tinha muito talento para a escrita, então a qualidade de seus textos não trouxe muitas surpresas. Não imaginava, porém, que todo esse talento também se refletia em outras linguagens, como a musical e a cênica. Com grande domínio vocal e perfeita interação com o público. Foi uma ótima surpresa.

Conheça um pouco mais da artista no vídeo abaixo reproduzido

 

 

E DON QUIXOTE DESCEU DA MONTANHA

José Neres

 

 

         O que fazer quando a solidão se transforma em uma companheira constante? Dormir? Ligar para os amigos? Isolar-se ainda mais? Fugir para um mundo imaginário? Transforma-se em montanha e perder contato com tudo e com todos? Nem sempre se sabe a resposta correta. Nem sempre o caminho escolhido é o mais adequado...

            A solidão pode ser um bem ou ser um mal. Pode servir como oportunidade de reflexão ou como forma de aumentar um desespero que ultrapassa até mesmo os mais recônditos limites da natureza humana. Todos nós pelo menos uma vez na vida já nos sentimos sozinhos no mundo. É nesses momentos que aprendemos a dar valor a detalhes que antes eram tidos como insignificantes.

            Mesmo um homem acostumado a enfrentar moinhos de ventos e a fazer morada em um mundo particular, como é o caso de Dom Quixote, o ilustre Cavaleiro da Triste Figura, pode um dia perder-se em um labirinto sem paredes, do qual a única esperança de saída pode ser pela condescendência de um amigo. Sem seu estimado Rocinante, sem sua imaginária Dulcineia e sem a presença de seu fiel escudeiro Sancho Panza, o que resta a um Dom Quixote preso a uma montanha, tal qual um Prometeu a cumprir sua eterna pena?

            Publicado há mais de quatro séculos, o livro de Miguel de Cervantes ainda hoje é considerado um dos principais marcos da ficção mundial. E seu protagonista é constantemente revisitado nas mais diversas linguagens.

            Neste sábado, 02 de novembro, dia de finados, quem se dirigiu ao Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, no Centro Histórico da capital maranhense, pôde entrar em contato com um Dom Quixote estilizado pelo sensível olhar do talentoso ator Urias de Oliveira.

            Apostando em um cenário minimalista, em sua possante voz, em sua expressividade corporal e na interação com o público, Urias de Oliveira, em pouco mais de uma hora, mostrou a todos os presentes que é possível desafiar a solidão e dividir bons e maus momentos tantos com conhecidos como com pessoas nunca antes vistas. Mostrou que é possível, na luta contra o monstro da solidão, trilhar caminhos entre as intrincadas veredas e transformar o isolamento das montanhas em comunidades de vida e de desprendimento.

            Em uma de suas mais brilhantes atuações, esse ator mineiro que adotou o Maranhão como lar, que quase sempre em suas peças explora mais os aspectos performático que as palavras, desta vez deixou dar vasão a toda a sua verve e trouxe à luz um Dom Quixote carregado de angústias existenciais, mas também de esperança em dias melhores. Tecnicamente, suas falas, seus cantos e suas múltiplas expressões corporais/faciais, podem ser considerados perfeitos, mesmo enfrentando as adversidades de ruídos externos.

            O texto, apesar de denso, foi talhado para ser compreendido por pessoas de todos os gostos artísticos, com mensagens de união, solidariedade de esperança. O Dom Quixote vivido por Urias é ácido, crítico, irônico e revestido de uma aura que explora o que há de mais intenso na essência do ser humano. Durante a representação, o público pôde perceber as diversas nuances interpretativas de um ator que valoriza os mínimos detalhes das técnicas vocais da impostação e da inflexão de voz e que tem consciência de que até mesmo um olhar pode fazer a diferença no conjunto da obra.

            Na representação, o público deixou de ter um papel passivo e passou a ser cúmplice dos aparentes delírios de Dom Quixote. A interpretação foi tão perfeita, que nem mesmo o barulho de um carro de som que infelizmente resolveu parar nas imediações ou mesmo o desnecessário discurso de natureza política conseguiram eclipsar o grandioso brilho de um espetáculo que teve seu apoteótico desfecho em plena rua.

            A Solidão de Dom Quixote despertou em todos os presentes uma reflexão sobre a solidão, que tantas vezes é acompanhada e cercada de pessoas que se isolam em seus mundos e se tornam montanhas incomunicáveis em um mundo em que a comunicação é mais que uma necessidade. Ao fim da tarde, Don Urias Quixote de Oliveira de La Mancha, desceu da sua montanha e seguiu seu caminho coberto de aplausos.

            Um belo espetáculo! Uma personagem perfeita! Um grandioso ator!

 

OBS: A peça fez parte da 12ª Aldeia Sesc Guajajara de Arte, que acontece de 01 a 09 de novembro do corrente ano.

 

 

NOITE DE FESTA EM ARARI

José Neres

         Neste último domingo do mês de julho de 2017, a pequena mas acolhedora cidade de Arari, na Baixada Maranhense, separada da capital por apenas 162 km, viveu uma noite esplendorosa, com uma junção perfeita entre a literatura e outras formas de arte. E, além disso, a população pôde saudar também o surgimento de mais uma poetisa que promete dar muitas alegrias ao município, ao Maranhão e ao Brasil como um todo: a jovem Samara Volpony, que na ocasião lançou seu livro individual de estreia intitulado Contramaré.

         O local escolhido para o lançamento não poderia ter sido melhor: o tradicional Colégio Arariense, que há décadas vem formando a juventude da cidade. Com uma decoração impecável e uma plateia ávida por conhecer o livro da estrela da festa, o pátio interno da escola ficou quase lotado, e quem não teve condições de ir, ou optou por ficar em casa, perdeu uma série de bons espetáculos: música ao vivo, recital de poesia, degustação de vinho e muita alegria compartilhada.

         Na plateia, além de autoridades locais, educadores, familiares e demais convidados, algumas personalidades do circuito artístico ajudaram a compor um cenário de estrelas. Circularam pelo ambiente cantores/músicos como Wilson Zara, Nosly e Ely Cruz, que não se contentaram apenas com a condição de ouvintes e subiram ao palco para compartilhar um pouco do talento com a excelente banda que animava a festa. Havia também muitos representantes do mundo das letras, escritores de gêneros diversos e que contribuíram recitando poemas do livro lançado, de autoria própria ou de outros escritores consagrados.

         Figuras como Carvalho Junior, Luíza Cantanhêde, Carlos Vinhorth, Ronilson de Sousa, Linda Barros, Paulo Rodrigues e Larissa Amorim saíram de seus respectivos municípios e foram prestigiar o debut literírio de Samara Volpony, alguns não resistiram ao ambiente que emanava poesia e aproveitaram para mostrar ao público seus dons artísticos.

         E quanto ao livro de Samara Volpony? O livro Contramaré foi editado pela conceituada Editora Patuá, com projeto gráfico e diagramação do designer gráfico Leonardo Mathias, que demonstrou muito talento e sensibilidade ao projetar o trabalho de modo que ele ficasse agradável aos olhos e até mesmo ao tato. Nas orelhas e na contracapa, Carvalho Junior, Salgado Maranhão e Mary Ferreira saudavam a chegada da nova escritora, que estreava em publicação individual, mas que já apresenta uma boa trajetória de textos em antologias e de premiações em concursos literários. Antes de entrar nos poemas, o leitor se depara com as palavras sempre equilibradas de Fernando Abreu, que assina o prefácio e se dedica a tocar em algumas sutilezas constantes na obra, o feminismo, por exemplo.

         Os poemas do livro são geralmente curtos e carregados de simplicidade e de leveza. A cidade, a memória, a condição humana, o olhar feminino e os questionamentos são as principais tônicas do livro. Em cada página o leitor se depara com uma escritora em construção, com alguns resquícios de tributo a Drummond, Cecília Meireles, mas que não se limitou rememorar e reverenciar seus mestres, mas sim que busca uma dicção poética própria.

         Samara Volpony é adepta dos versos brancos e livres, guia seus versos pela força do ritmo e pela cadência das palavras, geralmente tenta trabalhar a musicalidade das estrofes e equilibra imagens mentais e recursos acústicos sem abusar de nenhum desses elementos. A autora reconhece a simplicidade do livro, mas como é nas coisas simples que geralmente encontramos algumas das maiores expressões da beleza, podemos dizer que ela fez as escolhas corretas e, para um livro de estreia, Contramaré pode ser considerado uma bela obra. Que venham muitas outras!

VAGO RETRATO

tenho vinte e tantos anos

e não sei nada de mim

pouco importa o meu nome

me conservo assim, oculta

 

me reservo de inúteis esperas

desobrigo-me desse compromisso

de me ser

e sigo me (re)inventando

na eternidade

(CONTRAMARÉ, p. 23)

Sobre Teatro e Avencas

José Neres

(Professor, escritor e membro da AML)

 

         Gosto de teatro. Desde minha infância frequento teatros e ali é um lugar onde me sinto bem. Não pelo aparente glamour que algumas pessoas pensam que o ambiente exala, nem pela oportunidade de estar frente a frente com pessoas talentosas, mas sim pela possibilidade de convivência com a arte em todas as suas formas: da fluidez dos textos até a expressividade corporal, passando pelos detalhes quase imperceptíveis, pela música, pela fotografia, etc, etc, etc.

         Gosto mais do teatro ainda quando vejo a minha frente um cenário minimalista que permita aos artistas uma expressão mais vivaz de seu talento sem o desfoque de múltiplas parafernálias que, algumas vezes, servem apenas como forma de esconder as deficiências técnicas de toda uma produção. Gosto de um texto bem interpretado, com nuances e variações de voz ou vozes, em que o público possa se encantar tanto com as palavras quanto com os silêncios, com a luz, com as sombras e até mesmo com a escuridão. No teatro, como na vida, saber calar(-se) é tão (ou mais) importante do que saber falar. Daí a ideia de que silêncio também é texto e de que um bom ator fala com os olhos, com as mãos e com todo o corpo.

         Admiro artistas que sabem sincronizar sons, gestos, luzes e textos, em uma harmonia que talvez não fizesse sentido fora do palco ou no intricado e previsível roteiro chamado vida.

         Gosto de teatro e sempre que posso vou ver as peças e me encantar com o mundo mágico que é possível (re)criar por trás das cortinas, atrás das máscaras ou mesmo dentro de alegrias e de tristezas que se escondem quando todas as luzes se acendem e é hora de transpor ou umbrais da fantasia e voltar para a incômoda realidade. Claro que às vezes me decepciono, que nem sempre a peça é boa, que nem sempre os atores estão preparados para enfrentar o olhar inquiridor do público, mas isso faz parte da vida. Nem tudo pode ser bom o tempo todo.

         Nesta sexta-feira, depois de um dia inteiro de aulas, reuniões, correções de provas, engarrafamentos e de intermináveis filas, reservei parte da noite para assistir à peça Para uma Avenca Partindo, no Teatro Alcione Nazaré. Na porta do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, uma multidão tomava conta da entrada. Desconfiei logo que deveria haver outro evento acontecendo paralelamente. Tal desconfiança não teve sopro de maldade, mas estava coberta com a confiança de saber que nosso povo não tem o hábito de frequentar teatro, principalmente quando se trata de uma produção local. Dito e feito. A bilheteria para a peça estava sem fila. Na hora da entrada, uma pequena fila se formou e, sem atropelos, todos puderam tomar seus lugares.

         Na penumbra, o experiente ator Josué Redentor, ladeado à distância pelo competente músico Evgeny Itskovich, tomavam conta de um palco em um teatro que parece eternamente em reforma. Mas isso não importava no momento. Após os primeiros acordes, o ator começou o seu monólogo, um texto do sempre citado e pouco lido Caio Fernando Abreu. O que a plateia pôde ver e sentir ao durante toda a representação foi um ator com pleno domínio da técnica vocal e da expressão corporal, seguindo as marcações cênicas que valorizaram a musicalidade, o jogo de luz mesclado com o pó impregnado no figurino, que, nos movimentos mais dramáticos, produziam um belo efeito visual para a plateia, e que sabe ocupar todos os espaços do palco, sem se perder ou se desconcentrar.

         O texto, denso, pré-marcado pela assinatura de um grande autor de nossa língua, ficou em segundo plano quando comparado com a leveza da representação muito bem dirigida por Áurea Maranhão. Os efeitos musicais, complementados pela iluminação, foram primorosos e tudo isso arrancou merecidos aplausos do público, que, infelizmente, não lotou o teatro, mas que soube aproveitar cada segundo de luz e sombra, se palavra e de silêncio.

         Como disse antes, gosto de teatro. Principalmente por ele ser constituído não apenas de paredes, palco, assentos e cortina. Mas por ele ser feito por gente capaz de causar emoção e de se emocionar com palavras que não são jogadas ao vento, e sim para outras pessoas agradecidas pela mágica presença de minutos que se tornam eternos.

         Ficha Técnica: Texto (Caio Fernando Abreu); Direção (Áurea Maranhão); atores (Josué Redentor e Evgeny Itskovich); Iluminação (Thyago Cordeiro).

 

 

PÃO, OVO E FINÍSSIMAS ESPECIARIAS DO HUMOR

José Neres

 

 

                Havia muito tempo que eu acalentava o desejo de assistir à peça Pão com Ovo, seguramente o maior sucesso de público do teatro maranhense deste princípio de século XXI. No entanto, sempre ocorria algum imprevisto que me impedia de comparecer ao espetáculo. Lembro-me que, por três vezes, ao chegar à bilheteria, fui informado de que os ingressos estavam esgotados, não apenas para aquela sessão, mas também para as próximas. Em outros momentos, em apresentações públicas ao ar livre, eu chegava quase no finalzinho do evento e só tinha oportunidade de ver a plateia ensandecida pelos risos provocado pelo trio de atores que já se despedia.

                Eis então que surge a oportunidade de ver o espetáculo por inteiro... haveria uma apresentação a poucos metros de minha casa... e em um feriado... Não havia como perder! Como a apresentação estava marcada para o início da noite, aproveitei a manhã e a tarde para resolver algumas pendências. Cerca de uma hora antes do horário previsto, desvencilhei-me dos afazeres e fui para o local do evento: uma ampla praça, com lugar para pelo menos umas duas mil pessoas. Mas, sem dúvida, havia muito mais do que isso. Eu e minha família conseguimos um lugar com boa visibilidade e esperamos...

                Sons e iluminação foram testados, alguns esquetes do programa “Tá Bom Xêrosa”, com os mesmos atores vivendo diversas situações do dia a dia foram projetados. Atento à tela, o público ria à solta, mas esperava ansiosamente pelo início da peça.

                Finalmente começou o espetáculo. A dissimulada pretensa socialite Clarice Milhomem se apresentou ao público e deu início a um verdadeiro turbilhão de bom humor. Como se tratava de uma apresentação ao ar livre, o cenário era bastante minimalista, mas o texto e os atores levaram o público a imaginar os diversos ambientes nos quais se passava o enredo: uma repartição pública, uma sala, um barzinho popular, uma choperia, etc., com diversas situações que se encaixavam para tornar-se um todo significativo, levando ao palco um pouco do vocabulário maranhense e de situações corriqueiras, mas que nem sempre são percebidas por quem vive imerso na vida maranhense.

                O texto é bastante interessante e traz como epicentro detalhes da vida do povo do Maranhão, com toques de ironia e com fortíssima carga de bom humor. Em algum momento das falas das personagens o público se identifica, e isso aumenta o grau de interação entre a plateia e os atores que dividem o palco. As fofoquinhas, as conversas politicamente incorretas, o atendimento deficiente em bares e repartições pública fazem parte do grande cardápio servido durante a representação.

                É possível perceber a sintonia entre os três atores que fazem parte da Companhia. Eles se integram de tal modo que acabam envolvendo toda a plateia no clima de alegria que emana do palco ou mesmo das intervenções feitas com a participação direta do público. A temática, por sua natureza dinâmica, permite que o texto se modifique a cada temporada ou mesmo de uma semana para outra.

                A experiência e a integração entre os atores permitem a participação deles com intensidades variadas em cada um dos episódios que compõem a peça.

               

              O Experiente César Boaes se divide entre a esnobe e caricata falsa rica Clarice Milhomem, o folgado garçom, a sonhadora doméstica e outras tantas personagens capazes de levar as pessoas às gargalhadas. Bastante técnico e intenso em suas participações, César Clarice Boaes Milhomem serve como ponto de contato entre os outros dois atores, servindo como de referência para entrada e saída das personagens e provocando situações múltiplas para o desenrolar do enredo.

                Charles Júnior, que geralmente tem participações curtas nos episódios televisivos inspirados nas personagens da peça, ganha maior importância na representação ao vivo, indo além das limitações impostas pelo bonachão Zé Maria e sua indefectível camisa do Sampaio Correia. Para quem se acostumou com os trejeitos de uma personagem quase sempre com participação simples e pontuais, o jovem ator surpreende no palco, encenando, dançando e dando um brilho especial à representação.

                Um caso à parte é o de Adeilson Santos, que na pele de sua personagem Dijé, consegue altíssimo grau de empatia com o público. As pessoas vibram quando a popular Dijé aparece e a identificação é imediata. Os gestos estabanados da personagem, juntamente com seu vocabulário extremamente popular servem como âncora para diversas cenas e situações nas quais até o mais sisudo dos seres humanos é tomado pelo riso.

                Certa vez ouvi alguém dizer que Pão com Ovo era uma boa peça, mas que era muito regionalizada para fazer sucesso fora do Estado e que em pouco tempo a fórmula se esgotaria e ficaria repetitiva. Agora que vi o espetáculo, posso afirmar que não se trata de uma simples boa peça, mas sim de um ótimo espetáculo e que, com algumas pequenas adaptações, pode ser representado em qualquer teatro do Brasil, servindo para semear em outros rincões tanto o falar quanto alguns dos costumes tão comuns no Maranhão.

(Imagens retiradas de sites da internet)

 

 

A ANGUSTIANTE ESCRITA DO DEUS

José Neres

 Urias

            Há quem defenda a tese de que a obra de Jorge Luis Borges tenha sido feita apenas para ser lida ou, no máximo, ouvida. Em seus textos densos, cheios de imagens e de referências nem sempre fáceis de detectar, o escritor argentino conduz os leitores por labirintos infinitos de palavras e de imagens e, não raras vezes, abandona-os no meio de um turbilhão de ideias nem sempre fáceis de serem digeridas por quem não esteja habituado com esse fantástico escritor.

            Então, pela densidade dos textos, muitos acreditam que os contos e poemas de Borges não aceitem versões para outras linguagens, como a teatral e a cinematográfica, por exemplo. No entanto, quando talento encontra talento, tudo pode se tornar possível.

            Urias de Oliveira, um dos mais experientes e talentosos atores da atualidade, resolveu contrariar a escrita dos homens e apostar em uma versão teatral do conto A Escrita do Deus, um dos textos do livro El Aleph, de Borges. O resultado foi um espetáculo positivamente angustiante.

            Usando um cenário minimalista, mas cheio de simbologias, Urias de Oliveira apostou na lentidão do texto, que, associado aos jogos de sombra e de luz, transmite ao público a sensação de encarceramento de que trata o texto borgeano e, ao mesmo tempo, pode levar a uma reflexão quanto aos limites do ser humano, que tanto pode estar aprisionado em um cárcere de pedra em forma de “um hemisfério quase perfeito”, quanto nas entranhas de suas próprias limitações.

            O pequeno público que foi hoje (sexta-feira) ao Teatro da Cidade não deve ter se arrependido. No palco, um ator com total domínio das técnicas cênicas, seguro em cada passagem de sincronia entre gestos, texto e luz. O corpo, as expressões faciais e a voz são as grandes armas de Urias de Oliveira na transposição intersemiótica do texto literário para a linguagem teatral. Nenhum gesto do ator foi desperdiçado durante a apresentação. Os círculos imaginários que marcam a angústia da personagem no conto se transformaram em movimentos milimetricamente calculados, seja nas passagens em que a personagem expõe seu drama, seja na presença animalesca das feras que ganham vida no talento do artista.

            Lamentável mesmo somente a ausência do público, que, talvez por falta de divulgação, talvez por falta de hábito ou vontade de frequentar os espetáculos, deixou tantos lugares vazios, mas os aplausos certamente compensaram o esforço do ator e de sua equipe. Aplausos para Urias, tanto pela coragem de enfrentar esse desafio de adaptar um texto de Borges, quanto pelo excelente desempenho em um papel tão denso.

            As poucas pessoas da plateia devem ter saído do teatro angustiadamente felizes.

 

 

 

RIMBAUD E SEUS DEMÔNIOS

José Neres

            Fazia um bom tempo que não escrevia neste espaço sobre nosso Teatro (com maiúscula mesmo). Às vezes o tempo escasso se torna um grande inimigo para quem admira as artes. Os afazeres da vida profissional nem sempre permitem que eu acompanhe os movimentos culturais de minha terra. Porém, aproveitando o ponto facultativo ofertado pelo Estado e por outra empresa onde trabalho, fui assistir à peça Rimbaudemônio no último dia desta temporada.

            Comecei com muita sorte, pois cheguei ao Centro Histórico no exato momento em que alguém saía, deixando uma preciosa vaga para estacionar o carro sem precisar correr os riscos de um deslocamento. Alguns passos, uma multidão, um show gospel e diversos conhecidos marcavam a distância entre o estacionamento e a Sala Sated (Rua da Estrela), onde aconteceria o evento.

            Na portaria, o gentil e talentoso Charles Melo, diretor da peça, recepcionava o público que, aos poucos chegava. O simples e acolhedor espaço foi ficando lotado e, pouco depois das 20 horas, teve início o espetáculo.

            O primeiro destaque é para o texto forte e seguro escrito por Celso Borges. Mesmo quem nada sabia sobre a vida e a obra do polêmico poeta Rimbaud pôde descobrir algumas nuances essenciais de sua criação poética e ao mesmo tempo entrar em contato com estratégicos fragmentos de seus poemas que dialogavam tanto com o espetáculo em si quanto com o cenário e com a plateia, que não precisava se manifestar para sentir-se como parte da peça. A inventividade do diretor Charles Melo conseguiu imprimir às cenas a tensão expressa pelo texto de Celso Borges. A correlação entre presença no palco, vídeos, falas das personagens, silêncios e jogos de luz serviu como importantes guias para quem estivesse pouco habituado com a poesia do poeta francês e com sua atribulada vida, sem contudo substituir a leitura de suas obras. A peça provavelmente instigou alguém na plateia a ler os poemas do grande poeta.

            Outro destaque vai para a perfeita atuação do ator Raimundo Reis, que demonstrou extrema segurança em todas as falas, impondo o ritmo das cenas tanto pela expressão facial quanto pelas múltiplas inflexões de voz. Em diversos momentos da representação, o ator fez a plateia ficar hipnotizada com sua atuação, cujo ponto alto se dá no momento em que, sobre uma bancada e banhado pela vermelhidão da luz muito bem projetada, encarnou com perfeição toda a angústia de seu personagem.

            A atuação de Ruan do Vale, que interpretou o poeta Rimbaud, apesar de excelente, acabou sendo eclipsada, pelo menos nesta última noite da temporada, pelo brilho emanado pelo seu colega de palco. Mesmo assim seria injusto não elogiar sua expressividade e o domínio na interpretação de um texto difícil e que deve ter exigido concentração máxima. Qualquer vacilo seu poderia comprometer a ideia principal da peça. E em momento algum ele demonstrou insegurança.

            Os dois coadjuvantes tiveram um papel importantíssimo no desfecho da trama, mas poderiam ser um pouco mais explorados no decorrer na encenação. Também demonstraram ótimo grau de concentração, embora em determinado momentos exercessem mais o papel de organizadores do cenário, quase sem outra função expressiva. Porém quando foram chamados à cena, cumpriram seus papéis com grande competência e desenvoltura.

            A sala Sated tem como característica ser bastante acolhedora e, até mesmo por conta de suas dimensões, colocar o público como cúmplice dos espetáculos. Porém, no caso desta peça em particular, a disposição de alguns elementos cênicos pode haver deixado alguns espectadores em uma posição desprestigiada, principalmente na hora das projeções, mas nada que tirasse o prazer de estar presente à encenação.

            No somatório geral, Rimbaudemônio é uma excelente peça teatral, com texto forte e tenso, atores muito bem ensaiados e com uma direção firme, competente e corajosa ao mesmo tempo. Creio que essa peça possa ser representada em qualquer palco, dentro ou fora de nosso Estado, mostrando que é possível fazer verdadeiras obras de arte com poucos recursos, grande dose de boa vontade e muito talento.

            Meus sinceros aplausos para o diretor, o autor, todos os atores e, também, para o público, que não poupou os merecidos elogios ao final do espetáculo. A satisfação estampada no rosto de cada um dos presentes mostrava que a peça foi um sucesso.

 

 

 

 

 

AMOR NEM ASSIM NEM ASSADO

José Neres

 

 

            Subir a um palco para fazer um monólogo é sempre algo muito difícil para qualquer ator, seja ele iniciante ou experiente. Sem ter falas alheias para lhe servir de gancho e tendo que, em determinados casos, assumir papéis diferentes e até mesmo antagônicos, o artista tem que ser uno e múltiplo para conseguir se desdobrar no manejo com o texto e ao mesmo tempo convencer o público.

            No Monólogo “Quando o Amor é Assim e não Assado”, adaptado do livro homônimo, de autoria de Junior Marks (Francisco José de Sousa Marques Júnior), que também é o ator/autor da peça. O texto trata basicamente da transição do mundo adolescente para o universo dito adulto, com todos os conflitos existenciais, as dúvidas com relação à sexualidade, a busca de amizades sólidas e as angústias oriundas de escolhas nem sempre bem compreendidas pela sociedade.

            O protagonista é Neto um rapaz que, passando dos trinta anos de vida, faz uma reflexão sobre eu passado e suas descobertas físicas e sentimentais, além de descobrir-se, desde a adolescência, apaixonado por um colega/amigo da escola, Hiago, que se torna o contraponto da narrativa, ajudando a compor o clima do enredo.

            O cenário é extremamente minimalista, mas o suficiente para a progressão das cenas. Os caixotes em forma de cubo, e pintados de preto, apresentam múltiplas utilidades e servem como apoio em diversos momentos da representação, ora como parte da praça de alimentação de shopping, ora como bancada para o computador, ora como suporte para as mensagens que servem como guia para o desenrolar da história.

            Como autor do livro e adaptador do texto para a linguagem teatral, o ator Junior Marks demonstrou segurança nas transições de cenas, embora tenha iniciado a apresentação um pouco mais tenso que o necessário. Mas ao longo da representação voltou a tomar as rédeas da narrativa e soube conduzir o enredo para o clímax, envolvendo a plateia com algumas excelentes tiradas e um desfecho aberto que demonstrou bastante maturidade cênica.

            De modo geral, a peça “Quando o Amor é Assim e não Assado” cumpriu com seu objetivo, que era ir além do lúdico, deixando espaço para reflexões e debates sobre temáticas variadas como, por exemplo, as relações humanas, os conflitos familiares, amizades, amores conturbados, angústias existenciais e tantas outras questões que são levantadas nas entrelinhas do texto. Trata-se de uma boa peça que pode dar margens para diversas discussões.

 

ficha técnica

AUTOR/ATOR: Junior Marks

DIREÇÃO/SONOPLASTIA: Luciano Brandão

ILUMINAÇÃO/CENÁRIO: Wallancy Nunes

FIGURINO: Bid Lima

REALIZAÇÃO: Humanitas Grupo de Teatro

LOCAL: Teatro Alcione Nazaré (X Semana de Teatro do Maranhão, 2015)

Foto: Internet

 

QUANDO AS DIFERENÇAS CAEM DE UM CÉU AZUL OU CINZA...

José Neres

 

            O adjetivo pequeno/a pode esconder muitas surpresas. Às vezes demonstra a simples noção de tamanho. Mas tamanho é algo relativo! Às vezes traz dentro de si a noção da modéstia... Mas paradoxalmente, também pode ser sinônimo de grandeza, quando alguém dá atenção ao mínimo e transforma os mais simples gestos e as mais simples palavras em arte.

            E foi isso que a Pequena Companhia de Teatro fez hoje, 10 de novembro de 2015, em uma de suas participações na X Semana do Teatro Maranhense, ao encenar a peça Velhos Caem do Céu como Canivetes, inspirada livremente em um conto de Gabriel García Márquez, intitulado Un Señor muy Viejo con unas Alas Enormes.

Em uma noite em que tudo saiu de forma irretocável: o texto, o figurino, a atuação segura dos dois atores, a iluminação a trilha sonora e o ambiente, quem foi assistir ao evento não teve do que reclamar.

O texto, adaptado pelo experiente Marcelo Flecha, traz uma profundidade que tende a levar o público a uma reflexão sobre a própria condição humana. O encontro inusitado entre um artista renegado que vive na mendicância e um ente alado, que pode ser um anjo, um demônio, uma ave ou mesmo uma representação de um outro Eu que guardamos no ponto mais recôndito do nosso ser, traz à tona diversas discussões sociais, como a fome, o lupem-proletariado, o descaso com a natureza, o papel do artista, a falta de políticas públicas, a corrupção e as constantes crises que assolam o mundo. Mas essas mensagens vêm diluídas ao longo da encenação, sem a necessidade de um panfletarismo barato ou piegas. Cabe ao público filtrar essas críticas no meio de um texto bem elaborado.

O cenário também mereceu uma atenção especial do diretor. Bem elaborado e com todos os elementos essenciais à ação dramática, ele foi além da mera ambientação e passou a fazer parte do próprio texto da consciência verbal e corpórea dos atores. Nada ficou fora do lugar ou foi usado apenas como acessório. Associado ao jogo de luz e sombra e à trilha sonora, o cenário ganhou vida a cada cena e imprimiu ao texto e à atuação das personagens uma sensação de completitude e de bom relacionamento com os demais componentes da peça.

A atuação dos atores – Cláudio Marconcine, no papel do mendigo, e Jorge Choairy, como o ser alado – foi simplesmente brilhante, explorando tanto os aspectos sonoros de sons e ritmos, como a expressão corporal e facial, sem perderem o foco do texto nem a noção do espaço de encenação. Os dois atores não demostraram afetação e demonstram estar bastante à vontade dentro da densidade de papéis que exigiam muita concentração e sincronia em movimentos extremamente difíceis. O público, que quase sempre é apático em peças de grande carga dramática e que não seja eivada de duplos sentidos, deu a resposta, aplaudindo de pé ao final do espetáculo. Aplausos mais que merecidos!

            Se o céu era azul ou cinza, é uma questão de ponto de vista, mas, no final, as pessoas mais atentas da plateia devem ter percebido que o adjetivo que faz parte do nome da Companhia, no contexto da apresentação desta noite, foi sinônimo de grandeza e de competências.

Todos estão de parabéns!!!

 

CRÉDITOS
PEÇA: Velhos caem do céu como canivetes

COMPANHIA: Pequena Companhia de Teatro

PRODUÇÃO: Kátia Lopes

ATORES: Jorge Choairy / Cláudio Marconcine

TEXTO, DIREÇÃO, CENÁRIO , ILUMINAÇÃO E FIGURINO: Marcelo Flecha

Foto: Reprodução da internet

 

 

 

CONVERSAS ENTRE QUATRO PAREDES

José Neres

 Entre Quatro Paredes

       Em postagem recente, comentei o fato de os espetáculos e lançamentos realizados em nossa cidade – quando são de autoria maranhense – não terem a devida projeção e nem mesmo serem comentados. Caem no esquecimento no dia seguinte ao evento, sobrevivendo apenas na memória das pessoas diretamente envolvidas, nas fotos, nas filmagens e na angústia de quem investiu tempo e dinheiro em uma empreitada que quase sempre se volatizará no limbo do esquecimento.

          Nossos veículos de comunicação, que são eficientes e em divulgar os resultados dos jogos – não importa a hora do final das partidas, logo depois o leitor/ouvinte/espectador tem não apenas o resultado, mas também uma resenha e até mesmo um compacto com os melhores momentos – silenciam diante dos eventos artísticos locais. Os autores, atores, cantores, músicos e diretores, quando muito, depois de inumeráveis esforço, conseguem um espaço para divulgação do evento, mas raramente uma cobertura... Mas quando o envolvido na situação é um nome de projeção nacional ou internacional, a situação parece ser bem diferente...

          O público, por sua vez, se queixa de falta de divulgação, dos ruídos de comunicação, da desorganização, dos atrasos, da situação física dos locais dos eventos, etc. Mas essa gritaria tem pouca ressonância, pois o público geralmente é reduzido mesmo. No entanto, recentemente, vi o show de um famoso cantor que frequenta a mídia nacional ser anunciado, para as nove da noite e iniciar depois de uma da madrugada. A atração maranhense, contratada para dar tempo de a “Estrela” repousar, era xingada e vaiada todas as vezes que iniciava uma nova canção. A multidão ficou  horas e horas em pé, em um lugar desconfortável, quase insalubre, mas quase ninguém ousava protestar. Quando a Estrela subiu ao palco, o povo delirou de satisfação e cantou apaixonadamente cada uma das músicas...

       Interessante é que a divulgação também não foi tão grande. Os ingressos eram relativamente caros e o local, como já disse, era péssimo. Mas quando há interesse, as pessoas sabem buscar as informações de onde e quando serão os shows. Sem contar os que têm na sua agenda os estados onde seus ídolos irão se apresentar e os acompanham em diversos shows da turnê...

       Falo isso apenas para lembrar que mais uma vez o nosso público abandonou uma boa produção local. Falo da peça Entre Quatro Paredes, que vem sendo encenada em nossa capital. Sobre o texto de Jean Paul Sartre há pouco a falar, pois ele já vem sendo discutido há décadas e é reconhecido como uma das obras-primas da dramaturgia mundial. Mas podemos dizer algo sobre a apresentação.

     Sartre  Produzida pela Cia. Direto da Fonte, com a direção do experiente Charles Melo, a peça traz os conflitos existenciais de pessoas aparentemente normais que se encontram no inferno para pagarem eternamente seus pecados. Devidamente conduzidas ao aposento pelo guia, elas começam a interagir e percebem que cada uma esconde a própria essência dos olhos alheios. Aos poucos os segredos vão se descortinando e as máscaras vão caindo e a nudez moral começa a fazer parte de um cenário cru em que os dramas existenciais superam a própria narrativa externa.

       Charles Melo optou por não fazer um espetáculo com mirabolantes inovações técnicas, apelando para a simplicidade e para a interação entre personagens, cenário e público. Ele foi sábio o perceber que o texto em si e a atuação dos atores poderia prender o público nas intrincadas malhas do enredo. Mesmo sem novidades técnicas, é possível perceber o talento e o pulso firme do diretor na marcação das cenas e nas passagens em que as representações simbólicas da memória e do distanciamento temporal se fizeram necessárias para a “visualização” dos dramas internos.

         Na pele de personagens tão complexos e até dissonantes entre si, os atores e atrizes brilharam, cada um com sua intensidade e a seu modo.

         Dividido nas funções de ator e operador de luz/som, Luciano Ferrgar, que já vi em outras peças, teve atuação discreta, mas, quando precisou aparecer, teve ótima atuação, com voz firme e expressividade no olhar, com uma mescla de brutal e irônico, sem descuidar de suas múltiplas tarefas.

       Thaylon Diniz começou tenso, mesmo por ser o primeiro “hóspede” a efetivamente aparecer em cena e ter a obrigação de conduzir o fio narrativo que tem que prender o público em uma peça sem protagonistas nem antagonistas, mas aos poucos foi incorporando a personagem e conseguiu fazer bem seu papel.

       Segura e bastante técnica, Marlucie Emily conseguiu imprimir em cena as diversas variações comportamentais exigidas por sua conflituosa personagem e ainda teve uma bela atuação nas cenas em que atua de forma secundária a fim de compor as cenas em flash-back ou de imagem psicológica.

      A atuação de Maria Itskovich foi irretocável, embora em alguns momentos tenha dado muita atenção ao alinhamento do vestuário, conseguiu fazer sua personagem crescer dentro da narrativa ao usar com maestria os jogos de expressividade vocal e dos olhares perdidos no vazio existencial exigidos pelas cenas.

    Como disse antes, embora com divulgação em jornais e compartilhamentos em redes sociais, o público, como quase sempre, resolveu não ir. A data provavelmente não foi boa, como muitos eventos paralelos e com muitas pessoas em trânsito para os interiores ou para outros estados, por conta da proximidade de um feriado prolongado. Então o pequeno espaço Sated acabou ficando gigantesco para o seleto público que apareceu na sessão a que eu fui. Espero que as outras sejam lotadas, pois o espetáculo é bom todos – produtores, atores e apoio técnico – estão de parabéns.

       Ah! E em breve começam as antigas cantilenas do “eu não fiquei sabendo”, “mas ninguém divulgou”, “Não tive tempo”... Mas quem não foi ainda tem até o final do mês para fazê-lo. E se não for mesmo, pois muitos são os motivos, quem perde é a Arte, mas acho que ela já está se acostumando com isso em nossa Ilha.

 

 

 

POESIA É CARNE, É SANGUE

José Neres

Celso Borges

 

Ontem, por conta de um grande protesto que praticamente parou uma parte da Ilha, fiquei mais de duas horas preso no trânsito e acabei perdendo um compromisso. No entanto, havia um evento que eu não queria perder: voltei para casa, fiz um breve lanche e voltei para o Centro Histórico, claro, por outro caminho. O trânsito estava tranquilo...
Comprei os ingressos e esperei os quinze ou vinte minutos de atraso que já são de praxe para o início dos eventos em nossa cidade. Mas a espera valeu a pena.
Como sempre em nossos eventos culturais que envolvam Poesia ou qualquer outro tipo de manifestação literária, o público era escasso, embora ninguém pudesse reclamar do preço do ingresso: apenas R$ 10,00. Mas tenho certeza que muitas pessoas reservaram essa quantia de olho em algumas plaquinhas de ambulantes que, a poucos metros, anunciavam “três latinhas de cerveja por dez reais”.
Começou o espetáculo! A produção era assinada pelos competentes Márcio Vasconcelos, Celso Borges e Maristela Sena. Não foi preciso pedir que o público desligasse os celulares. A belíssima voz e a perfeita apresentação performática de Áurea Maranhão, que recitou trechos do Poema Sujo, de Ferreira Gullar, fizeram com que os presentes esquecessem os aparelhos e ficassem hipnotizados pela interpretação da atriz, que soube imprimir, de forma magistral, o ritmo adequado a cada passagem escolhida. Apresentação perfeita em todos os detalhes!
A seguir, entra o poeta Celso Borges acompanhado de Isaías Alves, dando início à apresentação de “Língua Lambe Lambe”. Enquanto Celso Borges declamava/cantava seus versos, que misturavam crítica social, jogos de palavras e mistura de ritmos, o jovem Isaias, de forma discreta, dava um show particular ao sincronizar os versos e a voz do poeta com múltiplos sons que dialogavam entre si. A bela voz do poeta encontrou seu complemento na competência sonora do músico. Novamente o espetáculo conseguiu emudecer o público e os celulares. Ninguém queria perder um acorde ou uma sílaba.
Finalmente entrou no palco o poeta Diógenes Moura, que de forma impactante, sem fazer esforço além do necessário, fez uma fusão entre textos e imagens, levando todo mundo a uma reflexão sobre o nosso cotidiano. Sexo, drogas, crimes, hipocrisia e violências desfilaram pela passarela de uma prosa poética despida dos interesses meramente formais. Em silêncio, a plateia se viu utilizando as lentes de aumento da poesia e do poeta, vendo algo que pode parecer insignificante para quem já está anestesiado pelas mazelas sociais.
Fim de espetáculo. O público, em êxtase, aplaudiu. Muitos haviam guardado, trechos do espetáculo em seus celulares, que, assim como seus donos, permaneceram mudos durante as representações, em respeito aos artistas, em respeito à Poesia.